- REI FUNDADOR (V)
Não havia língua que melhor soubesse
prometer, cantar uma fábula que a musicalíssima língua de Petrarca. Todavia era
a filha primogénita da latina, que não contava no seu léxico, aliás sóbrio no
essencial, o termo sim.
Pois D. Afonso Henriques não ligava
grande importância ao prometer e ao faltar frente a frente a outros príncipes,
no que provou ter em si o germe do prefeito homem das chancelarias.
Desmentindo-se, e não há que apontar no
rol das prendas do primeiro rei faculdade tão lucilante como essa do ludíbrio
verbal.
De resto, não está provado que não fosse
João Peculiar ou o chanceler Julião que por ele fizessem esse jogo com pau de
dois bicos em que os políticos modernos atingiram a subtileza máxima, aprendida
nos mistifórios de Aristóteles e no ilusionismo dos prestidigitadores. Mas se
não fosse assim – com papas e bolos se apanham os tolos – era possível que ele,
apenas pelo vigor do braço, virasse amanhasse tão grande geira?
D. Afonso Henriques era religioso, tão
maciçamente religioso como o exigia a política de resistência ao muçulmano, que
ameaçava subverter o mundo ocidental, e com a Roma pontifícia a cabeça da liga
neo-visigótica.
Para ele, e de modo geral, para todo o
europeu, a religião tinha-se tornado uma espécie de epitélio da natureza da
natureza humana.
Fazia assim parte da vida fisiológica
dos indivíduos. Todos os actos vinham tocados de determinação eclesiástica. Daí
a estreita e prosaica inteligência que tinha de haver, e de facto havia tanto entre
o espírito e Deus, ou entre o homem e o sacerdote, como entre o Príncipe e a
santa Sé.
Por isso mesmo o desrespeito ficava na
mesma escala da familiaridade. A cada passo os reinantes infringiam pactos e
concordatas celebradas com Roma, e o Papa, a cada passo, erguia o látego
excomunicatório e fustigava os relapsos e perjuros.
Mas o Santo Padre tanto excomungava como
desexcomungava. Da mesma maneira, os príncipes sabiam que a todo o tempo era
hora de comprar o indulto, ou mesmo a salvação a poder de dinheiro.
O braço pontifício levantava-se como
batuta e acudiam solícitas as pragas do Egipto, os gafanhotos, as lagartas, os
ventos ruins e os ares pestilenciais.
Em Portugal, durante a primeira dinastia
não houve monarca que não tivesse os seus problemas com a Cúria. Roma era
susceptível e ciosa das suas prerrogativas. Compreendia-se. Roma fora a mãe
chocadeira da pintainhada latina. Furtarem-se ao cumprimento das obrigações
contraídas era negra e intolerável ingratidão. Mas pagavam-no com língua de palmo,
bastava o Sumo Pontífice alçar o breve da maldição.
D. Afonso Henriques sentiu várias vezes
sobre si o pesado braço do pescador. Por ventura as circunstâncias em que o
facto se deu, cobertas hoje com o leve verdete do mito, mas sem que por isso
tenham perdido a verdade local, constituem o episódio mais pitoresco e
porventura shakspereano da sua existência agitada.
Lá porque as vozes de Dª Teresa, entre
ferros, chegassem a Roma, ou o que é mais verosímil, os maravadis de oiro, que
o infante ficara de contar para a burra de S. Pedro na qualidade de vassalo e
obsequi oso cristão, deixassem de
tilintar a caminho da Cidade Eterna, o facto é que o bispo de Coimbra, de
regresso a Portugal, recebeu o encargo de admoestar o rei. Admoestar e, se
tanto se impusesse, lançar o interdito sobre o Reino.
D. Afonso Henriques recebeu com ânimo
insofrido a reprimenda – que tinha o Santo Padre que meter o nariz onde não era
chamado? – e o prelado tratou de cumprir o mandato que trazia, pelo que
excomungou toda a terra, abalando para Roma como uma seta.
Sentiu-se muito o rei quando foi
informado e, indo-se logo nessa manhã à Sé e mandado tocar para o Capítulo,
disse aos cónegos:
-
Dai-me um Bispo…
-
Bispo temos, como havemos de vos dar outro? Respondeu um menos cobarde.
(continua)
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