segunda-feira, dezembro 10, 2012



AFONSO HENRIQUES
 - Rei Fundador (VII)


  - Hem? Já sabeis que não estou em falso. Mas, bem, bem, ide repousar, que se faz tarde, e amanhã falaremos.

Recolhendo-se o cardeal à pousada, mandou os archeiros deitar ração de cevada às mulas e apressar para partir. Meia-noite dada, acudiram os clérigos a sua convocação, ensonados uns, cara de caso, outros. E perante todos eles, boquiabertos, excomungou a cidade e o reino.

Isto feito, cavalgou e, ainda a manhã não era fora, tinha botado mais de duas léguas longe de Coimbra. Quando, ao levantar, D. Afonso Henriques o soube, pediu que lhe trouxessem o cavalo mais veloz. Foi-lhe nascer o sol, levado em furioso galope a corta mato, perto de Poiares.

Um pouco mais adiante foi encontrar o cardeal-legado que seguia com a comitiva. E, correndo para ele, sem aviso, deitou-lhe a mão esquerda ao cabeção, ao passo que com a direita desembainhava a espada:

 - Espera traidor que é hoje o teu último dia!...

Interpuseram-se os cavaleiros, que o tinham seguido a carga cerrada:

 - Não o mateis, senhor, que então é que vos tomam por herege verdadeiro!

 - Seja, não o mato, mas há-de desfazer tudo quanto fez e já tudo quanto fez…

 - Senhor -  gemeu o cardeal – tudo o que vós quiserdes eu o farei de boa mente.

 - Então desexcomungai tudo quanto excomungaste…

 - Senhor, eu desexcomungo em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo.

 - Prantai para fora dos alforges quanto levais… Prata, oiro e mais coisas de valia…

Os arrieiros esvaziaram os alforges que, de facto, iam a abarrotar de preciosidades.

Deixai também as bestas, que preciso delas para a guerra.
Bastam-vos três…

Resignou-se o legado a cumprir mais esta condição, julgando que era a derradeira.

 - Tomai agora o compromisso de que, mal chegardes a Roma, me enviareis um breve de Sua Santidade, breve em que se declare com todos os ff e rr que nunca mais em tempo algum eu e Portugal que ganhei com esta espada, serão excomungados…

Anuiu o cardeal, e Afonso Henriques fez saber qual a condição final, aceite aliás submissamente como as demais. O sobrinho do cardeal ficava em refém até chegar o documento de Roma. Se no prazo de quatro meses não viesse, então é porque não havia nada a fazer, e cortava-lhe a cabeça.

El-rei, depois, despiu o pelote, desafivelou  a camisa de malha usada pelos guerreiros do seu tempo e perante os olhos estupefactos do cardeal e dos cavaleiros, mostrou o peito lanzudo coberto de cicatrizes e em voz cava, martelada proferiu:

- Cardeal, fazei-me o favor de dizer a S.S. que vos pus bem à vista a cartilha das minhas heresias… e, um por um, foi apontando os golpes e enunciando as cidades, vilas e lugares onde os tinha apanhado e, com voz patética, concluiu:

 - Todos estes lanhos e talhadas as recebi nas batalhas contra os inimigos da nossa Santa Fé. Dizei-o ao Papa.

Tendo chegado a Roma, quis desautorizá-lo o Sumo Pontífice recusando-lhe a letra prometida a par das infalíveis censuras.

Respondeu-lhe o cardeal legado:

- Senhor Santo Padre, se vós vos vísseis nos assados em que eu me vi, um homenzarrão daqueles a agarrar-vos a cabeça com a mão esquerda, a espada na mão direita, o cavalo grande como uma torre, a escavar a terra, parecendo que vos estava abrir a cova, ah, não darias apenas um bula, mas a própria cadeira de S. Pedro! (continua)

Extraído da obra de Aquilino Ribeiro – Príncipes de Portugal – Suas Grandezas e Misérias.

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