terça-feira, janeiro 29, 2013


Vida e Morte de Joana
   

«1. Certo dia, um ano e pico depois de casarem, discutiram por causa de umas despesas, ele deu-lhe uma estalada tão forte que a fez cair desamparada. Pediu-lhe perdão, ó amor desculpa, não estava em mim, mas às vezes és tão parva, ela chorou, ela gritou, que não lhe admitia aquilo, a criança já estava a dormir, ainda bem que vergonha se calhar devia ter ficado calada, pronto, tinha passado, gosto muito dele, é meu marido, agora até está tão carinhoso, anda vamos para a cama, desculpa amor.

Foi despedida, para ele as coisas não estavam fáceis na empresa, bateu-lhe mais vezes, arrancou-lhe cabelos, ordinária, não vales nada, mais socos e pontapés, ela como um feto a tentar proteger-se, não me batas não me batas!, doeu tanto, abriu-lhe os lábios, ai meu Deus!, abraçou-a, vai pôr um penso não é nada, vai mas é acalmar a criança manda-a calar, no trabalho só tenho chatices chego a casa e tenho que te aturar, estás tão gorda, tenho que ganhar para todos e tu aí sem fazer nada, desaparece.


Doía-lhe o corpo, doía-lhe a sorte, ele está tão diferente, o que vai ser de mim, amanhã a mãe vai ver e vai perceber e eu não quero que saiba. Ó mãe ando adoentada, mas que é filha que voz é essa, ó mãe não é nada de especial tomo um Brufen e passa, um beijo grande, mãe, um beijo ao pai, eu mal possa passo aí, um beijo, mãe.


Respirava transida de medo, ele vai chegar, eu não sou feia, eu não sou burra, encolhida por fora e mirrada por dentro, ó querido, ó querido, tens de descansar, vá, anda para a mesa, tens razão, querido, desculpa as calças ainda não estavam prontas na lavandaria, porque é que me estás a bater, para, olha a criança aos gritos, não me chames isso à frente dela, ai!, para, para!


Na primeira vez que foi ao hospital, ele lá fora na escuridão, que vergonha o que vou dizer, caí, tropecei, o braço dói-me tanto, a senhora tem o braço fraturado o médico severo como é que isto aconteceu dona Joana, caí senhor doutor, caí, caiu?, mas caiu como?, caí, mas a senhora está cheia de hematomas que queda foi essa?, caí senhor doutor, nem me dói muito, veja lá dona Joana, veja lá.


Saiu, ele ali. Ele ali.


Voltaram a casa, ele com o gelo da raiva, ela com o silêncio e o cheiro do medo, como vai ser a minha vida e o menino lá em casa sozinho, e está tão estranho e já me ligaram do infantário, ai como é que vai ser, se calhar sou eu, não é só culpa dele.


Quem me dera fugir como é que vou fazer e os vizinhos que me evitam, também a gritaria todas as noites e a senhora do 2.0 andar a perguntar-me se preciso de alguma coisa, não, obrigado dona Luísa, que lhe aconteceu ao braço, coitada?, e o olhar dela, ai se ela diz alguma coisa ele dá cabo de mim. Agora deu-lhe para os ciúmes, que me fiz ao amigo que sou ordinária não sou nada e a minha mãe já sabe e quer que eu vá lá para casa, que vai à Polícia se eu não for, ele mata-me se sabe ó mãe não me desgraces, e a criança, mãe?, isto passa é uma fase, ó filha isto não pode continuar, valha-me Deus.


Joana saiu nos jornais, "marido mata mulher", os vizinhos ouviam muitas vezes gritos o casal discutia, a dona Luísa a contar ele achava que ela andava com outro, não sei se era verdade, uma desgraça ela andava estranha de facto ele era simpático e bem-educado com todos nada fazia prever.


2. Em 2011 foram assassinadas 27 mulheres num contexto de conjugalidade e relações de intimidade e 44 foram alvo de tentativas de homicídio (dados do Observatório das Mulheres Assassinadas da UMAR). Apenas nos primeiros seis meses de 2012, já tinham sido assassinadas 20 mulheres.
O número de casos de violência doméstica é exponencialmente superior. Por exemplo, entre 15 de Novembro e 31 de Dezembro de 2012, só nos distritos de Lisboa e Porto foram denunciados mais de 800 casos à PSP e à GNR, não sendo difícil antever que o número real seja muito mais elevado. Os casos de violência doméstica contra homens estão também a aumentar.

Isto é insuportável numa sociedade decente. Isto não é uma questão de "mulheres", é uma de vergonha colectiva. Somos cobardes, olhamos demasiado para o lado. Somos responsáveis. Porque não há leis que valham perante o silêncio cúmplice.»
 [JN]
Autor: Azeredo Lopes. 



Nota

A violência doméstica é um drama e uma vergonha humana, social e cultural. Um puro acto de cobardia. A nossa herança de sociedade machista, da prevalência do homem e dos seus reconhecidos direitos do passado assumidos cinicamente: "em casa manda a mulher mas na mulher mando eu". Tudo isto que nós pensamos já ter desaparecido aí está, a bater-nos à porta, nas páginas dos jornais, acredito que não tanto como antigamente. Esta juventude parece-me ser "uvas de outra cepa", fruto da convivência entre sexos durante todo o processo educativo e da alteração das mentalidades, mas para a Joana não foi a tempo...
   

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