O JUSTICEIRO
Pelos vistos, não sabia ler nem escrever
para além de que era gago, como já se disse. Contracenava com o seu primo de
Castela, D. Pedro, o Cruel, com quem se parecia tanto como dois ovos de serpente
se parecem.
Só fazia três coisas que eram o seu
regalo: caçar aves e animais de pêlo, folgar, comer e beber e fazer justiça –
mais exercícios de maldade que outra coisa – o que revela bem o estado de barbárie crassa e
o baixo nível da sociedade portuguesa. Não se andaria muito longe da verdade se
a comparássemos a um sobado africano com a diferença da nossa vida eclesiástica
e mesmo essa muito primária com os curas não sabendo ler nem escrever e os
próprios bispos a assinar de cruz.
E como diziam missa, perguntar-se-á?
- Conheciam de ouvido os passos
litúrgicos com o respectivo latim-latão, pronunciando os dizeres com voz
automática, tal como agora nas macumbas e práticas supersticiosas para emitir
esconjuros e enguiços.
Para onde o rei ia exigia mesa posta,
franca e farta e nisso era muito gabado porque gastava bastante, ao contrário
de seu pai que era sovina, unhas-de-fome.
A
guerra fazia-se com mesnadas ou seja, mercenários, oriundos de servos da gleba,
que eram sustentados, pagos e armados pelos ricos-homens. Quando era na hora crítica
punham de banda o arado e a charrua e empunhavam a lança, o arco e mesmo a
funda e saíam em campo em defesa do seu príncipe.
A caça era hábito de todos os reis e
gente de prol, mas já a dança àquela altura aparece como um passatempo
esporádico e por parte de um rei, algo de anormal inspirado, talvez, na velha
Jerusalém com o rei David que ia bailar diante da Arca mas, para o nosso rei D.
Pedro, a dança era uma bambochata, saricoté de escravos.
Das vezes que atravessava o Tejo, vindo
de Almada, os pirangas do cais, que já lhe conheciam o fraco, esperavam-no com
os seus momos, danças e brincadeiras e vá de armara a contradança para, entre
batuques e moirisca, o conduzirem ao Paço.
Acontecia a altas horas da noite o rei,
porque estivesse com espertina, debaixo da influência de espíritos libidinosos
ou por comportamentos próprios de pessoa atreita a epilepsia, saltava da cama,
chamava pelos dois camareiros, João Mateus e Lourenço Paios e mandava aparelhar
a serenata.
Vinham tocadores, acendiam-se archotes e
lá ia ruas fora, sapateando, com os dedos tocando castanholas. Os vizinhos
acordavam estremunhados e vinham às janelas. Gritavam-lhes:
-
Vinde daí. É el-rei…
E lá vinham eles, uns em pelota ou mal
envoltos num saio ou capote com capuz e lá iam todos ao som da fandangada
acordar os mortos debaixo do lajedo das igrejas.
Ao cabo destas festanças picadas e repicadas
no terreiro, o rei chegava ao paço meio derreado e cheio de fome. Mandava vir
vinho e fruta e tudo comia à barba longa. No fim, o rei atirava-se para cima da
cama dois dias e duas noites a sono solto.
Era, pois, um rei do mais ramboieiro e
em festas e comezainas consumia os maravedis que lhes chegavam à mão.
Um dos festivais, falados pela
sumptuosidade e rasgo especial de que se revestiu foi aquele em que um tal João
Afonso Telo recebeu o título de conde.
Quem era este fulano para receber tais
honras de el’rei?
Não o diz o cronista do reino, Fernão
Lopes, como não diz também outras coisas movido pela descrição na qualidade de
escrivão da pureza que devia guardar segredo, mas tudo deixa antever nas
entrelinhas que andava por ali homossexualidade.
Quando Telo saíu da residência régia
para o mosteiro de S. Domingos, o rei preparou-lhe uma festa com seiscentas
arroubas de cera que fizeram cinco mil círios e tochas que milhares de homens
seguravam nas mãos, não deixando dúvidas de que era o seu favorito.
Telo passou no meio daquele rio de
luzes, entre fidalgos e ricos-homens e o rei, à frente, batendo a mais
desenfreada dança.
No Rossio, armaram tendas improvisadas
com fornos de cozinhar onde assavam vacas inteiras que eram postas à disposição
do bom povo de Lisboa, bem como montes de trigo e talhas cheias de vinho e tudo
à saúde daquele garboso D. João Afonso Telo, miminho de el’-rei.
(continua)
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