terça-feira, fevereiro 05, 2013

O Justiceiro...

D. Pedro I
O Justiceiro
(conclusão)


Barbaridades deste tipo acontecidas com o pajem, motivadas tantas vezes por pequenos abusos da autoridade ou desvios à moral de carácter sexual, são aos cardumes na crónica deste rei. Não mandou ele enforcar um pobre homem porque antes de dar a mão àquela que era a sua legítima mulher a violentara?

Chamava-se ela Maria Roussada e D. Pedro, mal ouviu esta palavra, arrebitou a orelha como podengo que sente caça. Roussada?

Explicaram-lhe que, de facto, o homem dormira com ela à viva força mas que resgatara o ultraje, recebendo-a. Demais eram felizes, muito dados um ao outro e tinham filhos.

 - É o mesmo. Paga por ontem, nunca por hoje. Paga pelo que fez. E mandou passar o baraço ao desgraçado. Enquanto ele caminhava para o patíbulo, seguiam-no a mulher e os filhos debulhados em lágrimas e a fungar a sua má sorte.

O acto revela tanta maldade que o padre Baião sentiu necessidade de acrescentar: «Dizem que isto sucedeu no termo de Lisboa, no lugar de Benfica, e que, dizendo os que acompanhavam a El-Rei, que a mulher ficava mal, respondera El-Rei: «Bem fica». E casando-a depois com outro, lhe deu com que passar ficando esse o nome daquele lugar, que antes tinha outro, porque as palavras dos príncipes ditas com discrição ficam em provérbios, e quase em leis e ordenações».

Fernão Lopes, cronista do Reino, a única fonte, nada acrescenta, e o suplemento do padre Baião mais parece um remendo mal deitado que deixa ver a grosseira linha branca.

Aquele homem era useiro e vezeiro em aplicar a bruta manápula em tudo que metesse saias. Pequenos enredos de amor ele os perseguia como um rafeiro histérico e, de certo, deliciava-se em seu sadismo aplicando aos delinquentes penas tão cruéis.

Narra Fernão Lopes um outro caso em que, Afonso André, um honrado mercador, era atraiçoado pela mulher. Chegada a notícia aos ouvidos de El-Rei conseguiu ele que fossem apanhados na bela da frescata. Não esteve com meias medidas. A ela mandou-a queimar, a ele degolar.

Entretanto marido que andava na sua vida de negócio soube-o, ficou muito queixoso e dirigiu-se a el’rei mas este tapou-lhe a boca antes que ele pudesse dizer da sua justiça:

 - “Alvíssaras, amigo meu, dai-me alvíssaras, que estais vingado da aleivosa mulher. Vós devíeis saber do traste que ela era e do homem excomungado que vos punha os cornos».

O caso que deu mais brado passou-se no Porto. Era sabido e notório que o Bispo da cidade, homem avantajado em honras, fazendas e carnagão, roubara a mulher a um dos bons moradores do burgo e vivia com ela de cama e pucarinho. Para cúmulo, o cornudo fora intimado a não por mais os pés  na cidade, o que o triste cumpria com medo de que lhe tirassem a vida como lhe haviam tirado a consorte,

D. Pedro soube-o e foi como se mil macacos o mordessem. Agitava-se, coçava a cabeça, dava voltas e reviravoltas no aposento, fazia todos os gestos de ameaças imagináveis. Morria, em suma, por se ver na cidade, teatro do crime inaudito, ansiando o momento de pedir contas ao velhaco do prelado.

Botou-se ao Porto numa corrida a mata-cavalos e mal chegou ao Paço mandou chamar o bispo. Entretanto deu ordens aos porteiros:

 - Mal o prelado entre, pondes no olho da rua os criados e aqueles que o acompanhem e porta fechada a toda a gente, seja lá quem for, mesmo o chanceler. Ouviram bem?

O Bispo logo advertiu pelo tom da recepção que havia novidade. Que poderia ser? Não lhe passaria pela cabeça que fosse crime lesa-majestade tomar a bela rapariga ao estúpido mesteiral que não sabia apreciar o que tinha.

A Igreja lusitana sempre fora anti-celibatária e eclesiásticos de todas as ordenes viviam maritalmente com mulheres, que criavam e educavam em casa a ninhada de filhos nas barbas do mundo, mas lá quanto a palmar a mulher do próximo, o caso era mais sério e para D. Pedro, pelo menos, à margem de semelhante moral.

Mas histórias deste género eram o pão nosso cada dia. Que gravidade havia de maior numa burguesinha que estava contente com a sua nova  sorte, amaridada com um príncipe da Igreja? Que tinha o rei com a vida particular do prelado?

D. Pedro é que não entendeu assim. Mal o bispo entrou, cerrou a porta e, depois de tirar o gibão, foi-se ao homem como lenhador à árvore que tem de rachar em cavacos. Despiu-lhe o cabeção, despiu-lhe a murça, depois o colete de lã e quando os lombos do bispo luziram, gordos e róseos empunhou o chicote de cordas entrançadas que sempre caprichava em trazer à cintura à laia de um nobre espadachim, e vibrando-o nas costelas do bispo proferia:

 - Renega, maldito de Deus, renega a desvergonha em que vives! Renega se não queres que te faça o canastro em astilhas!

E ali estalou grande reboliço, o bispo que expunha as suas razões, gemia, chorava, protestava, dava saltos de corça, o rei que lhe ia aplicando as suas vergalhadas de mistura com urros de algoz e domador.

A gritaria foi de tal ordem que os privados de El-Rei, temendo o pior, decidiram-se a intervir. O escrivão da puridade, espécie de Secretário de Estado dos dias de hoje, bateu à porta clamando:

 - Senhor, senhor, cartas muito importantes de Castela!... e desse jeito lhe tiraram das mãos o desgraçado bispo, se não esfanicava-o.

Dar-se-á o caso que este sadismo todo fosse segregado pela inveja, a inveja e o rancor de quem não gozou os prazeres que outros tiveram, filho da impotência ou da impossibilidade de os gozarem.

(Aquilino Ribeiro - Príncipes de Portugal - Suas Grandezas e Misérias.)
                                                                          

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