O Justiceiro... |
D. Pedro I
O Justiceiro
(conclusão)
Barbaridades deste tipo
acontecidas com o pajem, motivadas tantas vezes por pequenos abusos da
autoridade ou desvios à moral de carácter sexual, são aos cardumes na crónica
deste rei. Não mandou ele enforcar um pobre homem porque antes de dar a mão
àquela que era a sua legítima mulher a violentara?
Chamava-se ela Maria
Roussada e D. Pedro, mal ouviu esta palavra, arrebitou a orelha como podengo
que sente caça. Roussada?
Explicaram-lhe que, de
facto, o homem dormira com ela à viva força mas que resgatara o ultraje,
recebendo-a. Demais eram felizes, muito dados um ao outro e tinham filhos.
- É o mesmo. Paga por ontem, nunca por hoje. Paga
pelo que fez. E mandou passar o baraço ao desgraçado. Enquanto ele caminhava
para o patíbulo, seguiam-no a mulher e os filhos debulhados em lágrimas e a
fungar a sua má sorte.
O acto revela tanta maldade
que o padre Baião sentiu necessidade de acrescentar: «Dizem que isto sucedeu no
termo de Lisboa, no lugar de Benfica, e que, dizendo os que acompanhavam a
El-Rei, que a mulher ficava mal, respondera El-Rei: «Bem fica». E casando-a
depois com outro, lhe deu com que passar ficando esse o nome daquele lugar, que
antes tinha outro, porque as palavras dos príncipes ditas com discrição ficam
em provérbios, e quase em leis e ordenações».
Fernão Lopes, cronista do
Reino, a única fonte, nada acrescenta, e o suplemento do padre Baião mais
parece um remendo mal deitado que deixa ver a grosseira linha branca.
Aquele homem era useiro e
vezeiro em aplicar a bruta manápula em tudo que metesse saias. Pequenos enredos
de amor ele os perseguia como um rafeiro histérico e, de certo, deliciava-se em
seu sadismo aplicando aos delinquentes penas tão cruéis.
Narra Fernão Lopes um outro
caso em que, Afonso André, um honrado mercador, era atraiçoado pela mulher.
Chegada a notícia aos ouvidos de El-Rei conseguiu ele que fossem apanhados na
bela da frescata. Não esteve com meias medidas. A ela mandou-a queimar, a ele
degolar.
Entretanto marido que andava
na sua vida de negócio soube-o, ficou muito queixoso e dirigiu-se a el’rei mas
este tapou-lhe a boca antes que ele pudesse dizer da sua justiça:
- “Alvíssaras, amigo meu, dai-me alvíssaras,
que estais vingado da aleivosa mulher. Vós devíeis saber do traste que ela era
e do homem excomungado que vos punha os cornos».
O caso que deu mais brado
passou-se no Porto. Era sabido e notório que o Bispo da cidade, homem
avantajado em honras, fazendas e carnagão, roubara a mulher a um dos bons
moradores do burgo e vivia com ela de cama e pucarinho. Para cúmulo, o cornudo
fora intimado a não por mais os pés na
cidade, o que o triste cumpria com medo de que lhe tirassem a vida como lhe
haviam tirado a consorte,
D. Pedro soube-o e foi como
se mil macacos o mordessem. Agitava-se, coçava a cabeça, dava voltas e
reviravoltas no aposento, fazia todos os gestos de ameaças imagináveis. Morria,
em suma, por se ver na cidade, teatro do crime inaudito, ansiando o momento de
pedir contas ao velhaco do prelado.
Botou-se ao Porto numa
corrida a mata-cavalos e mal chegou ao Paço mandou chamar o bispo. Entretanto
deu ordens aos porteiros:
- Mal o prelado entre, pondes no olho da rua
os criados e aqueles que o acompanhem e porta fechada a toda a gente, seja lá
quem for, mesmo o chanceler. Ouviram bem?
O Bispo logo advertiu pelo
tom da recepção que havia novidade. Que poderia ser? Não lhe passaria pela
cabeça que fosse crime lesa-majestade tomar a bela rapariga ao estúpido
mesteiral que não sabia apreciar o que tinha.
A Igreja lusitana sempre
fora anti-celibatária e eclesiásticos de todas as ordenes viviam maritalmente
com mulheres, que criavam e educavam em casa a ninhada de filhos nas barbas do
mundo, mas lá quanto a palmar a mulher do próximo, o caso era mais sério e para
D. Pedro, pelo menos, à margem de semelhante moral.
Mas histórias deste género
eram o pão nosso cada dia. Que gravidade havia de maior numa burguesinha que
estava contente com a sua nova sorte,
amaridada com um príncipe da Igreja? Que tinha o rei com a vida particular do
prelado?
D. Pedro é que não entendeu
assim. Mal o bispo entrou, cerrou a porta e, depois de tirar o gibão, foi-se ao
homem como lenhador à árvore que tem de rachar em cavacos. Despiu-lhe
o cabeção, despiu-lhe a murça, depois o colete de lã e quando os lombos do
bispo luziram, gordos e róseos empunhou o chicote de cordas entrançadas que
sempre caprichava em trazer à cintura à laia de um nobre espadachim, e
vibrando-o nas costelas do bispo proferia:
- Renega, maldito de Deus, renega a desvergonha
em que vives! Renega se não queres que te faça o canastro em astilhas!
E ali estalou grande
reboliço, o bispo que expunha as suas razões, gemia, chorava, protestava, dava
saltos de corça, o rei que lhe ia aplicando as suas vergalhadas de mistura com
urros de algoz e domador.
A gritaria foi de tal ordem
que os privados de El-Rei, temendo o pior, decidiram-se a intervir. O escrivão
da puridade, espécie de Secretário de Estado dos dias de hoje, bateu à porta
clamando:
- Senhor, senhor, cartas muito importantes de
Castela!... e desse jeito lhe tiraram das mãos o desgraçado bispo, se não
esfanicava-o.
Dar-se-á o caso que este
sadismo todo fosse segregado pela inveja, a inveja e o rancor de quem não gozou
os prazeres que outros tiveram, filho da impotência ou da impossibilidade de os
gozarem.
(Aquilino Ribeiro - Príncipes de Portugal - Suas Grandezas e Misérias.)
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