D. João I de Portugal
Estava D. Pedro I na Chamusca, aproximou-se dele Nuno Freire, mestre de Cristo, com um menino de sete anos pela mão.
- Senhor – e pegou nele ao colo para que
melhor o visse – este inocentinho é o filho que fizeste na boa Dª Tereza
Lourenço e vem pedir-vos a bênção…
-
A bênção de Deus te cubra – proferiu o rei beijando na boca à maneira hebraica
de Simeão.
O pequeno lançava-lhe uns olhos tímidos,
se bem que estranhos, e aquecidos por um arzinho de respeito filial, bem
ensinado como vinha. O pai, agradado e bem disposto, cingiu-lhe a espada à
cinta e, armando-o cavaleiro, acrescentou, num sorriso que lhe iluminava a cara
toda:
-
Uma nigromante leu-me um dia a “buena-dicha”. Entre outras coisas vaticinou-me
que havia de ter um filho chamado João, o qual subiria ainda mais alto do que
eu.
Ora, não tenho um filho chamado João,
tenho dois. Será este o que há-de voar? Escolha Deus qual fora de sua mercê…
Como estivesse vago o mestrado de Avis,
os comendadores reunidos em capítulo em capítulo elegeram para o cargo aquele
bastardo real. E logo, tirando-lhe o gibão, lhe foram endossados os hábitos
talares da Ordem, antecipando-se ao beneplácito papal com que seguramente
contavam,
Cresceu o filho de Tereza Lourenço em anos
e bizarria, instruído em todos os exercícios da guerra, como gineta, esgrima a
cavalo e a pé, anos a fio pisando as tábuas da casa monástica de Avis.
Excelente cavaleiro e mandador de lança,
com boas luzes das humanidades foi ele o escolhido, sem grandes dúvidas, quando
D. Fernando já golfava sangue do peito minado pela tuberculose e Dª Leonor
Teles escandalizava pelos destemperos com o seu amante galego, João Fernandes
Andeiro.
Filho de rei, coluna forte do templo e
da corte, ele é que era o João do presságio.
A hora era turva. À boca grande se dizia
que se tornara um questão de decência matar o conde João Fernandes Andeiro, amante
da rainha. Leonor Teles, embora com coração grandioso, não resistia ao seu
temperamento, faltando ao respeito à sua própria pessoa, ao monarca,
cognominado de Formoso, isto é, gentil e ao mesmo tempo homem dado a delícias.
Já na Corte, a sua pessoa almiscarada, fora uma fonte de pecado e exemplo de
devassidão. Que ia ele fazer, por altas horas, à câmara de sua irmã, Dª Brites?
Um ano andou ele a lutar com a morte. Na
casa dos trinta, parecia já um velho caduco. A tísica encontrava boa auxiliar
na febre do amor que o consumia. Em pouco tempo ficou seco como as palhas. D.
Fernando morreu com trinta e oito anos na flor da vida.
O povo de Lisboa acabara por perder
aquela submissão à realeza em que vivia desde séculos. Dava conta de que o rei,
pretensamente ungido pelo Senhor, era de barro, como os demais humanos. Podia
ser melhor, pior, mais venerado, menos venerado. Dependia da natureza dos seus
actos e do modo de ver dos seus vassalos mas não passava de um magistrado
susceptível de eleição como outro qualquer.
Do povo é que lhe vinha a vis e a vara.
A revolução em Portugal, de 1383-1385,
não foi apenas por razões económicas. As causas morais, no mínimo, prevalecem
como deflagradoras de uma atmosfera explosiva, um clima de revolta, motivo
concreto de luta pela vida.
Nesta revolução, é de admitir sem
reservas, como pretende António Sérgio, uma certa subversão do regime de propriedade
pela “limpeza” acontecida na população em consequência da grande peste e
consequente acumulação de pequenas fortunas.
Onde antes havia o servo teria passado a
existir o remediado. O foreiro ficou resgatado do senhorio. O burguês
tornar-se-ia suzerrano. Tudo alterações repentinas, desiqui libradoras
da sociedade, mas ela, a aleivosa Leonor Teles, foi a que acendeu o rastilho
pela sua conduta tão pouco edificante.
<< Home