terça-feira, fevereiro 12, 2013


Pobres de Espírito?


Raquel – A nossa unidade móvel encontra-se hoje no monte das Bem-Aventuranças, a poucos quilómetros de Cafarnaum. Connosco Jesus Cristo que nos concede uma nova entrevista. Como se sente o senhor aqui onde pronunciou um dos seus discursos mais inolvidáveis?

Jesus
– Muito emocionado, na verdade.

Raquel
– Segundo investiguei, neste monte, o senhor falou da lei e dos profetas, de nos colocarmos nas mãos da providência, da eficácia da oração, da regra de oro…

Jesus
– Não sei se falei de tantas coisas… mas recordo que transmiti a mensagem mais importante do reino de Deus.

Raquel
– Referia-se, sem dúvida, às bem-aventuranças, porque este monte, precisamente, chama-se assim: “Monte das Bem-Aventuranças".

Jesus – Tinha chovido muito na noite anterior, recordo-me… caiu granizo. Os agricultores perderam a colheita, perderam tudo. Os latifundiários não queriam abrir os seus celeiros, os usurários afiavam os dentes.

Raquel
– E nessa difícil conjuntura o senhor reuniu as pessoas e lhes falou.

Jesus – Sim, éramos muitíssimos, o povo estava desesperado, as crianças sem comer, as viúvas pedindo esmola.

Raquel
– E foi então quando o senhor lhes prometeu o reino dos céus.

Jesus – Como o reino dos céus?

Raquel
– Quero dizer, o senhor disse-lhes que depois deste “vale de lágrimas” entravam no “reino dos céus”, não foi assim?

Jesus – Não, eu não disse isso.

Raquel – O senhor disse: “Bem-aventurados os pobres de espírito porque…

Jesus – Não, não, não. Eu disse os pobres. Ponto final. Os pobres-pobres.

Raquel
- Mas num dos Evangelhos, creio que de Mateus, o senhor refere-se aos “pobres de espírito”…

Jesus
– Pois me interpretou mal o meu amigo Mateus. Tê-lo-á feito com boa intenção mas interpretou erradamente.

Raquel
– O senhor não se referia às pessoas que têm um coração humilde.

Jesus
– Eu referia-me aos pobres, aos esfomeados, aos que choram de frio, aos sem teto, sem terra, sem trabalho. Aos que não têm pão para levar à boca.

Raquel
– Não tínhamos?... o senhor também se incluía entre esses pobres?

Jesus
– Sim, eu era um de tantos outros. Eu também passei fome. Por isso me diziam: “médico, cura-te a ti mesmo”. Porque eu era um pobre diabo sem uma moeda no bolso… e falava da libertação dos pobres!

Raquel
– A libertação no reino dos céus é mais além.

Jesus – Não, Raquel. Falo da libertação na terra, não lá mas cá.

Raquel – Podes explicar melhor.

Jesus
– Eu falei no reino de Deus e, pelo que vejo, alguns entenderam reino dos céus.

Raquel – E qual é a diferença? Não a vislumbro.

Jesus – É que os céus estão muito para cima, muito longe. O reino dos céus é uma promessa para muito tarde. Um consolo para depois da morte.

Raquel
– E não foi isso que o senhor tanto pregou?

Jesus
– Tudo ao contrário, Raquel. O reino de Deus é para agora, para hoje. Não é para a outra vida mas para esta.

Raquel
– Que mais disse Jesus neste monte? Que significas o reino de Deus?

Uma breve pausa para os comerciais e continuaremos em directo do Monte das Bem-Aventuranças. Raquel Perez… adiante estúdios.


NOTA

Dois mil anos depois…

 - Os “sem abrigo” que não têm nada e dormem sobre cartões, completamente tapados com uma manta, nas arcadas do Terreiro do Paço, em Lisboa...

 - O Sr. Ulrich, director do BPI, que diz que eles aguentam e surrealisticamente afirma que um dia pode ser um deles… Parece que neste mundo nada muda… 


O Monte das Bem-Aventuranças é uma colina a poucos quilómetros de Cafarnaum. No cimo, está uma Igreja de forma octogonal, uma recordação das oito bem-aventuranças mencionadas no Evangelho de Mateus, ao reconhecer uma das mensagens mais conhecidas e famosas de Jesus da Nazaret, uma das que melhor condensa o essencial da sua teologia.

Às vezes interpretam-se as bem-aventuranças como uma lista de normas de conduta: “se deve … ser pobre”; “se deve… ser misericordioso”; etc…

Esta interpretação moralista falseia o conteúdo desta “boa notícia” destinada aos pobres, aos perdedores, aos sem poder. As bem-aventuranças não são normas morais e muito menos uma fórmula de consolo para todos a quem as coisas correm mal neste mundo dizendo-lhes que, pelo contrário, no outro tudo irá correr bem.

Jesus chamou felizes aos pobres porque lhes anunciava que Deus estava do seu lado, era seu aliado, Deus não era neutral perante as suas misérias e que eles se uniriam aos outros pobres e deixariam de ser pobres.

Jesus não chamou felizes aos pobres por eles se portarem bem, por aguentarem sem protestar as suas misérias mas apenas porque eram pobres. Deus, como justo que é, quer que haja justiça e que os pobres deixem de ser pobres.

A que pobres se dirigia Jesus nas suas bem-aventuranças? Aos “pobres de espírito” de acordo com Mateus, ou aos “pobres” na tradição de Lucas?

A versão de Lucas é a mais antiga. Os pobres a que Jesus se refere são aqueles que não têm nada, os que têm fome. O “espírito”, a que mais tarde se referiu Mateus recolhe fórmulas empregues no Antigo Testamento que falavam do espírito humilde “anawim”(pobres, desgraçados, indefesos, desamparados, que sabem que estão nas mãos
 de Deus porque foram abandonados pelos poderosos, vivendo à margem tanto da religião do Templo como do sistema político do Império.

Mais uma vez se percebe que a mensagem de Jesus é revolucionária. Fosse ele um acomodado, preocupado com a vida no reino dos céus, aliado do poder, sedento de riquezas como a Igreja que diz “ser dele”, e nem teria feito história, quanto mais passar à história…

Jesus foi um homem do seu mundo, preocupado com as questões sociais e políticas da sua gente as quais pretendeu mudar e, por isso, foi assassinado.
  

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