quarta-feira, março 27, 2013


A Memória Colectiva


A Memória Colectiva esboça-se pouco tempo após o aparecimento do Homo Sapiens, sob uma forma que, provavelmente, começou por ser passageira: arranjos geométricos de calhaus, pedras e  paus colocados no solo ou sinais efémeros traçados na areia.


Mais tarde, adquire um carácter de maior perenidade quando é elaborada uma proto-escrita constituída por entalhes feitos num suporte de madeira ou de osso, sequência de nós formados numa tira de couro ou de uma fibra vegetal que funcionavam mais como elementos auxiliares de memória.

Mas na mesma época, aparecem já desenhos figurativos mais eficazes na medida em que aquilo que exprimem pode dispensar comentários sendo verdadeiros veículos de informação capazes de transmitir conceitos.

Estão neste caso, para além das estatuetas e dos desenhos gravados em osso ou marfim, os célebres frescos das abóbadas e das paredes das grutas que representam mensagens do Homem de Cro-Magnon muito embora existam riscos de erros sobre a finalidade real da imagem transmitida através do tempo.

Há cerca de 6.000 produziu-se um tremendo salto qualitativo quanto ao armazenamento de informações quando passamos da proto-escrita sintética (um único desenho evocava uma frase inteira ou um grupo de frases) para uma escrita analítica, a verdadeira.

Foi na Suméria, na Mesopotâmia Meridional, num local de grandes templos, nas cidades de Uruk e Lagash que foram encontrados placas de argila com pictogramas gravados que permitem seguir a evolução da escrita dos Sumérios.

O pictograma não tem em vista a representação de uma frase completa mas apenas de um conceito específico que corresponde a uma palavra.

As gravuras mais antigas são desenhos simplificados em que cada um deles remete para um objecto, animal ou uma parte do corpo humano.

Esta escrita utilizava mais de 1.500 pictogramas o que seria difícil de memorizar e, por esta razão, desapareceu há mais de 5.000 anos tendo sido substituída por sinais abstractos desprovidos de qualquer semelhança seja com o que for.

É a escrita Cuneiforme composta por 600 sinais diferentes e nasceu dos escribas sumérios que desenhavam os pictogramas primitivos recorrendo a canas afiadas em bico, “calamos” com que desenhavam a argila mole que era posta a secar ao sol ou em fornos.

Mais tarde, os escribas por comodidade habituaram-se a cortar os calamos em bisel e em vez de desenharem limitavam-se a cravar as extremidades biseladas na argila, formando deste modo marcas angulosas cuja disposição codificada era parecida com os antigos pictogramas e como as marcas faziam lembrar a forma dos pregos que em latim se denominam “cuneus” foi chamada a esta escrita de “cuneiforme”.

O sinal esquemático deixa muito rapidamente de representar uma palavra completa mas apenas o símbolo de uma só parte da palavra ou seja um “fonograma” que representa um fonema (ou uma sílaba).


As placas sumérias serviam então, fundamentalmente, para inventariar cereais, cabeças de gado, escravos e permitia ter em dia a contabilidade das poderosas comunidades religiosas e dar instruções precisas aos responsáveis administrativos e militares.

A escrita cuneiforme é uma ferramenta de gestão e de comunicação de valor inestimável e rapidamente se espalha por todo o Médio Oriente e é neste tipo de escrita que são redigidos o Código de Hamurabi, rei da Babilónia e a “Epopeia de Gilgamesh” que foi encontrada em Ninive, na biblioteca do rei assírio Assurbanípal.

O Egipto faraónico inventa há cerca de 5.000 anos um sistema que lhe é próprio, a escrita hieroglífica, formada por conjuntos particulares de pictogramas, os hieróglifos, (de hieros, que significa sagrados, e gluphein que quer dizer gravar).

A escrita pictográfica egípcia primitiva utilizava cerca de 700 sinais diferentes, número que aumentará posteriormente ao mesmo tempo em que se tornava fonética ou silábica e os mesmos hieróglifos tanto eram usados como pictogramas como fonogramas, o que tornava também obrigatório o uso de sinais determinantes.

Um pouco antes, a China dota-se de uma escrita muito particular.

Os pictogramas da língua chinesa são desenhados ou, melhor, são caligrafados a pincel em suportes muito diferentes, mas essencialmente, em rolos de seda.

Muito estilizados, eles sugerem mais do que descrevem os objectos ou as palavras e tornam-se “ideogramas”.

Este sistema, que será verdadeiramente codificado há 3.500 anos não passa à fase fonética e permanece na fase ideográfica (um conceito -uma palavra – um sinal) pelo que tem de utilizar vários milhares de ideogramas diferentes, com um conjunto de 200 sinais determinantes que permitem tornar o sentido daqueles mais claros.

Os letrados clássicos da China dos Tang (618 – 907) tinham de saber 431.286 sinais diferentes!

Temos, portanto, que a escrita começou por ser global e sintética, tornando-se de seguida pictográfica ou ideográfica, depois fonética ou silábica e finalmente alfabética.

O alfabeto é composto por um conjunto de sinais escritos convencionais em que cada um corresponde a um único som falado.

Estes sinais de número limitado são susceptíveis de serem dispostos segundo combinações permutáveis de modo a formarem as várias sílabas e as diferentes palavras.

Esta escrita alfabética parece ter sido inventada há cerca de 3.400 anos em Ugarit, na Síria, um porto comercial à data muito importante mas dois séculos mais tarde a cidade foi destruída por um exército inimigo, e foram os Fenícios, povo de comerciantes e marinheiros, que dois séculos depois divulgaram por todo o Mediterrâneo um outro alfabeto que compreendia 22 caracteres, apenas consoantes. Nas línguas semíticas, são as consoantes que dão o sentido enquanto que as vogais são pouco utilizadas e só têm como papel clarificar a função gramatical da palavra.

Este alfabeto foi aperfeiçoado pelos gregos que o completaram introduzindo 5 vogais suplementares há pouco menos de 3.000 anos.

E assim, em relativamente pouco tempo, a humanidade dotou-se de uma memória colectiva escrita e poderá agora perguntar-se qual a soma de informações que ela representa.

Os arquivos centrais da cidade-estado de Ebla, com mais de 3.000 anos, actualmente Tell Mardikh no Djeziré, na Síria, armazenam placas de argila que têm gravado pictogramas cuneiformes e representam uma capacidade de armazenagem de 10 elevado a 8 Bits.

Bits é a simplificação para dígito binário e é a mais pequena unidade de medida de transmissão de dados usada na Computação e na teoria da Informação embora hoje já sejam feitas pesquisas em Computação Quântica, os Cubits.

Um Bit tem um valor único, 0 ou 1, ou então, verdadeiro ou falso e é armazenado como uma carga eléctrica dentro de um dispositivo  denominado Memória.

Hoje em dia, para além da electricidade utilizam-se também as fibras ópticas, ondas electromagnéticas e ainda por via da polarização magnética nos chamados Discos Rígidos.

Depois dos arquivos centrais de Ebla e mais perto de nós, 2.300 anos, temos os 400.000 rolos de papiro que eram a glória da grande biblioteca de Alexandria que constituíam uma memória próxima dos 10 elevados a 10 bits.

O recheio desta extraordinária biblioteca foi mandada queimar em 640 pelo califa Omar que teria explicado o seu gesto do seguinte modo:

- “Quanto aos livros, ou eles dizem a mesma coisa que o Alcorão e são inúteis ou dizem outra coisa e são falsos ou perigosos…”


 (Um pensamento destes só pode ser proporcionado por uma religião em que um tirano se socorre de um deus para impor o seu domínio e prejudicar toda a humanidade… Temos tido mais casos destes, não à escala de uma Biblioteca – que era a mais importante do mundo antigo – mas sobre muitos outros escritos. Outras vezes, os tiranos, nem precisam de invocar um deus qualquer, basta-lhes uma ideologia, a sua, já se vê...)


Finalmente com a Imprensa, a Memória Colectiva volta a progredir muito consideravelmente e no final do século XX o depósito de informações contido em livros, numa Grande Biblioteca imaginária, excluindo jornais e revistas, contando 200 a 300 páginas por livro e 2.000 caracteres por página, chega-se a 10 elevado 14 bits.

É evidente que toda esta prodigiosa capacidade de armazenamento de memória colectiva tem um interesse relativo na medida em que 6.000 anos depois da sua invenção, um ser humano adulto em cada dois ignora a escrita e mesmo aqueles que a dominam têm uma capacidade muito limitada para explorar na totalidade a memória escrita da humanidade quando, só para se passar um jornal de ponta a ponta, se levam quatro horas e meia.

A rádio e a televisão dão uma ajuda tornando acessíveis a um maior número de pessoas, a troco de um menor esforço, os dados da memória colectiva mas, mesmo neste caso, é preciso dedicar-lhes muito tempo com o inconveniente de que a escolha dessa memória escapa ao livre arbítrio do “consumidor”.

Parecia, portanto, que se tinha atingido outro limite tanto mais difícil de ultrapassar quanto era certo resultar de uma incompatibilidade funcional entre as memórias individuais, por um lado, e a memória colectiva, por outro.

Foi então que apareceu a “telemática” que aperfeiçoou novos suportes: memórias ópticas, magnéticas ou electrónicas.

Tal como os neurónios do sistema nervoso central, os suportes modernos da memória colectiva permitem armazenar e tratar as informações colocando, de imediato, ao alcance da selecção individual a totalidade do saber da colectividade.

Em termos de armazenamento chegou-se a um ponto tal em que é possível, devido a um efeito físico especial, (plasma de electrões) armazenar um bilião de informações (10 elevado a 12 bits) num volume equivalente a …um pequeno grão de sal!

O segundo problema é o da exploração dos dados e aqui intervém o computador que restitui ao homem a informação desejada nas melhores condições de rapidez e eficácia.

McLuhan, filósofo e educador canadense, já falecido, que trouxe para o nosso dialecto a conhecida expressão “aldeia global” profetizava que com os novos meios de comunicação “o conjunto da humanidade está destinado a formar uma única e imensa audiência, a reconstituir a noção de sociedade tribal e a viver numa aldeia planetária”.

Claude Lévy-Strauss também comunga na ideia de que no século XXI só haverá uma única cultura, uma única humanidade mas chama a atenção para as clivagens verticais, entre os que têm tudo e os que têm nada e, sobretudo, para as clivagens horizontais entre gerações com valores desfasados…

Então, qual é a continuação lógica para a evolução do Homo Sapiens Sapiens?

- Uma nova espécie nascida de um fenómeno catastrófico imprevisível?

- Uma tribo de “Homo communians” funcionando à maneira de um organismo pluricelular?

- Ou um “Homo” muito simplesmente “Sapiens” que resolveria ser um pouco menos sapiente…mas um pouco mais sábio?

O Neolítico surgiu como a idade de ouro para o género humano que descobre o seu poder sobre a natureza, vive melhor e durante mais tempo conhecendo a humanidade um espectacular crescimento demográfico mas as realizações que caracterizam este período de desenvolvimento provocam, igualmente, efeitos perversos.

O progresso produz o caos e a desorganização, aquilo a que se chama de entropia, sempre em busca de novos desequilíbrios e o excedente de energia que desta maneira se gera paga-se à custa de desorganizações sucessivas, do meio natural por um lado, da sociedade dos homens por outro.

A aquisição de novos bens e o desenvolvimento da vida urbana contribuem para desfazer a profunda solidariedade que reinava dentro da tribo.

O género humano, que sentia intuitivamente a sua homogeneidade genética, descobre as suas diferenças e inventa hierarquias.

A escrita, que permite constituir e conservar uma memória colectiva representa, sem dúvida, um imenso progresso mas esta maravilhosa ferramenta de comunicação não é neutra e contribui para modificar mais uma vez o comportamento dos homens.

Dando origem à palavra, o alfabeto lançou o género humano num universo analítico e abstracto. Influenciado por esta nova maneira de ver o mundo e de comunicar com os seus semelhantes o Homo Sapiens Sapiens começa a ter de si uma percepção enquanto indivíduo. A tribo, fora da qual a vida do homem do paleolítico não fazia sentido explode, desintegra-se.


A dialéctica do “Dono e do Escravo” nasceu da civilização agrária e da escravatura.

Será possível imaginar que no novo contexto da civilização mediática moderna, se possa desenvolver uma civilização planetária em que o “Homo Communicans” reencontre o sentido da tribo?


P.S.

Este texto foi produzido com apoio na obra “A Origem do Homem”, de Claude Louis Gallien, Prof. Catedrático na Universidade René Descartes onde dirige o Laboratório de Biologia do Desenvolvimento e cuja leitura recomendo vivamente.

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