DO
CARNAVAL
Episódio Nº 60
- É… - apoiava Jerónimo,
enrubescendo.
- E crer… Existem ainda homens inteligentes
que crêem. Crer… Acreditar que um Deus, um ser superior, nos guie e nos dê
auxílio… Mas ainda há quem creia…
- Há…
- Olhe, Jerónimo, dizem que foi Deus quem
criou os homens. Eu acho que foram os homens que criaram Deus. De qualquer
modo, homens criados por Deus ou Deus criado pelos homens, uma e outra obra são
indignas de uma pessoa inteligente.
- E Cristo, Pedro Ticiano?
- Um poeta. Um blagueur. Um céptico. Um
diferente da sua época. Cristo pregou a bondade porque, naquele tempo, se
endeusava a maldade. Um esteta. Amou a Beleza sobre todas as coisas.
Fez em plena praça pública
blagues admiráveis. A da adúltera, por exemplo. Ele perdoou porque a mulher era
bonita e uma mulher assim tem direito a fazer todas as coisas.
Cristo conseguiu vencer o
convencionalismo. Um homem extraordinário. Mas um Deus bem medíocre…
- Como?
- Um Deus que nunca fez grandes milagres!
Contentou-se em multiplicar pães e curar cegos. Nunca mudou montanhas de um
lugar, nunca fez descer sobre a terra nuvens de fogo, nem parou o sol. Cristo,
tinha contra si, esta qualidade: sempre foi um mau prestidigitador.
- E Cristo amoroso?
- Cristo, como homem, esteve sempre coerente.
Pregava o perdão porque, então, a vingança era lei. Pregava a castidade porque,
na época, a luxúria reinava. E, pelo menos para o exterior, ele foi um puro,
apesar da perseguição de Madalena e de outras mulheres…
- E no interior?
- Sei lá! Pode ser até que Cristo conservasse
a sua castidade… Em todo o caso… O vício entre quatro paredes não é vício… É
esta a lei do mundo…
- E amar romanticamente e crer romanticamente
entre quatro paredes?...
- A imbecilidade é sempre a imbecilidade onde
quer que seja.
Jerónimo mudava de assunto.
- Você, Pedro Ticiano, é o homem de espírito
mais forte que eu já vi. Com quase setenta anos ainda é ateu…
- Ah, não tenho medo do inferno… E, no caso
dele existir eu me darei bem lá…
- Você sempre foi meio satânico… É capaz de
fundar um jornal oposicionista no inferno. Voltaire, você e Baudelaire no
inferno… Que gozado!
Pedro Ticiano sorria,
vendo que Jerónimo não resistia à fascinação da sua palavra. E gostava de
derrubar os sonhos daquele homem medíocre e bom, que tinha o único defeito de
querer intelectualizar-se.
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