DOMINGO
(Na minha cidade de Santarém)
Vivo há quase treze anos na rua a que
comecei a chamar “minha”. Foi nela que iniciei o processo de envelhecimento
logo após a reforma. A gente reforma-se para envelhecer em paz e ela, a minha
nova rua, a pouco e pouco, transformou-se, a seguir à minha casa, no meu mundo.
O
meu mundo exterior porque é nele que circulo já que as caminhadas que impus a
mim próprio, as faço diariamente no tapete do ginásio a funcionar mesmo por
baixo da casa onde resido.
Depois
de ter tido tantas ruas “minhas” ao longo da vida, esta será com certeza a
última e talvez por isso comece a nutrir por ela um carinho especial. Os
extremos tocam-se: a primeira rua, a da casa onde nasci, lá na parte oriental
da velha cidade de Lisboa onde vivi dez anos, ficou gravada para sempre na
minha memória. Esta, sendo a última, como espero, “irá comigo”, forma de dizer…
Primeiro, era só a rua, logo de seguida,
foi o “meu Café”, a “minha mercearia”, a “minha farmácia”, que chegou mais
tarde mas na hora certa quando comecei a precisar dela, o “meu qui osque” que há anos passou a ser uma bela loja de
jornais, revistas, tabacos e jogos de lotaria e do euro milhões.
Aqui ,
todos os dias, religiosamente, compro o meu jornal porque não sei tomar o
pequeno almoço no café sem o jornal à minha frente numa prática que já vem de
há muitos anos e, finalmente, a “minha padeira”, mais recente, que faz umas “sapatinhas”
de farinha de centeio pelas quais me apaixonei…
Com a “minha” rua e os “meus estabelecimentos”
vieram os “meus” vizinhos, fregueses como eu e embora sejamos todos um pouco
para o macambúzio, à boa maneira portuguesa, na hora do atender e do pagar o
cliente tem sempre a oportunidade para uma fala que torna mais fácil uma
segunda palavra, um sorriso… vantagem das mercearias sobre os grandes espaços
comerciais, é tudo mais apertadinho…são sempre os mesmos...
O estratagema repete-se:
-
Atenda primeiro esta senhora que eu não tenho pressa e ela pode ter que ir
fazer o almoço…
-
Ah!, muito obrigado mas eu esperava a minha vez, o senhor chegou primeiro…
- É verdade, são só estes dois queijinhos…
Na vez seguinte, a gente se cruza e já se
cumprimenta, passámos a conhecidos lá da mercearia, uns, do Café, outros, …
vizinhos do mesmo bairro… estreitados pela mesma rua onde se desenrolam as
nossas vidas, as nossas pequenas vidas.
A rotina está instalada: nas horas, nos
locais, na sequência das idas e vindas… Eu sei que não é conveniente, perdemos
a noção do tempo, todos os dias passam a ser iguais.
Não, nem todos!
Quarta-feira, a penúltima de cada mês,
fui a Lisboa almoçar com os meus colegas de curso. A minha neta chama-lhe o
almoço dos velhotes. Aproveitei o bom tempo que finalmente apareceu decidido a
ficar.
Os campos alagados do Ribatejo que se
vêm da janela do comboio estão a secar rapidamente e as sementeiras atrasadas
vão recuperar em força com o benefício das águas que inundaram as terras. É o
renascer da vida nos campos.
Estas viagens mensais a Lisboa são o
reencontro com a minha outra cidade, a que me viu nascer. Saio do comboio e
ando a pé, encho o olhar daquela luz tão luminosa como só Lisboa tem e paro no
Terreiro do Paço, uma das maiores e mais belas Praças da Europa, no
enquadramento do estuário do Tejo, com as sete colinas por detrás com os seus
miradouros.
Sem
dúvida, a mais linda cidade de todas depois do Rio de Janeiro com a vantagem de
não ter nas encostas que morrem na bela praia de Copacabana as favelas de má
fama que tiveram de ser conqui stadas
aos traficantes de droga pela força do exército.
Nas nossas colinas temos lá bairros muito
velhinhos que vêem de outros tempos como o próprio nome deles indica: “Alfama”,
Mouraria”… de quando a cidade era dos mouros, há tantos séculos que só o local
é o mesmo, provavelmente também a morada dos nossos antepassados que primeiro chegaram
a esta parte do mundo mas já então, com certeza, o sol visitava as águas do
estuário do rio e reflectia a sua luminosidade nas sete colinas que lhe eram
sobranceiras.
Hoje, sim, tenho disponibilidade de
espírito e idade para apreciar a beleza da minha cidade de Lisboa que tal como
eu acusa os anos que tem nos prédios velhos, muitos deles abandonados,
recordando tudo o que nela vivi quando não a apreciava devidamente.
Meus amigos, os que ainda não são
velhos, esperem pela velhice para se enternecerem condignamente com as coisas belas
da vossa vida que sempre conheceram mas a que não deram a devida atenção. Nesta
fase já não vai haver muito mais tempo… aproveita-se cada momento, cada olhar.
Agora não há pressa, já ninguém exige a nossa presença. Muitas ou poucas, as
horas e os dias são agora todos nossos e o único compromisso é com o tempo que
nos resta.
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