segunda-feira, abril 29, 2013

O "velho" Jeep Willys, companheiro de tantas aventuras

48 Anos

 Depois…


Era
Março de 1965 e eu regressava da guerra de Angola no Paquete Vera Cruz que se aproximava lentamente do porto da Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa, como se estivesse relutante em devolver ao país os soldados que levara dos braços dos familiares para a incerteza de um destino considerado patriótico por Oliveira Salazar.

Talvez fossem pruridos de quem tinha a consciência pesada por não devolver a totalidade da carga que levara 27 meses antes. Mas para uma mãe que não ia receber de volta o seu filho que lhe interessava aqueles que voltavam agora? Apenas aumentaria a sua dor.

A dor das mães que esperaram inutilmente a chegada dos filhos da guerra é histórica no meu país. Ainda até à pouco falavam que D. Sebastião havia de regressar numa manhã de nevoeiro… As mulheres sempre sofreram com a ausência dos seus homens andassem eles nas guerras, nas aventuras dos mares ou nas pescas.

Recordo sempre, porque as conheci na década de sessenta, as mulheres da Nazaré, com as suas sete saias, sentadas na praia, remendando as redes e aguardando a chegada dos seus homens. Ali, sentadas na areia, trabalhando e conversando, estavam mais perto deles, vigiavam o mar cheio de perigos naquela zona da costa portuguesa.

A sorte das mães e das esposas portuguesas desde que iniciámos as nossas aventuras pelas terras de além-mar esteve sempre ligada a uma praia ou a um porto na ânsia de um filho ou de um marido que tarda em chegar.

A minha sorte foi boa, regressei, mas lembro dois soldados, meus camaradas de guerra, que numa emboscada em vez de terem sido mortos ou feridos foram levados pelo inimigo, raptados e nunca mais soubemos deles.

Que teriam dito à família?

-  O seu filho desapareceu…levaram-no…não sabemos se está vivo ou morto…

Que espaço terá ficado para uma réstia de esperança dessas mães indecisas sem saberem ao certo o que aconteceu aos seus filhos?

Recordo essa lenta aproximação do Paquete Vera Cruz o suficiente para saber que não estava eufórico. Nem contente, nem feliz, talvez aliviado… agradecido por estar ali, de novo, vivo e escorreito e se 27 meses antes não queria pensar naquilo que me poderia esperar numa situação que desconhecia por completo, também, naquele momento, não queria pensar no meu futuro.

Mas como já vão longe essas lembranças… à distância de uma vida. Casado prematuramente, com um filho, sem casa, sem emprego, com um curso superior inacabado, restava-me a casa do meu sogro para uma situação humilhante de favor…

Que outras “guerras”, então, me esperariam?

Hoje, conheço-as, já as vivi, mas então, nessa manhã em que o Vera Cruz se aproximava timidamente do cais da Rocha de Conde de Óbidos, eu não queria pensar nelas, estava a chegar de uma guerra, tinha direito a uma pausa.

Naqueles momentos, enquanto o Vera Cruz não atracava, tudo estava em suspenso, até as responsabilidades que me esperavam.

Depois, o impacto daqueles últimos 27 meses, 15 dos quais em convivência pacífica com os Luenas nas chamadas “terras do fim do mundo”, no distrito do Moxico, Alto Zambeze, fronteira leste de Angola.

Estava tudo tão presente dentro de mim. África é como uma mulher que nos possui e mesmo quando já longe continuamos a senti-la, nos seus cheiros, nos seus contornos, na sua música em todo aquele espaço a perder de vista à nossa volta que nos enche a alma e nos dá a noção da nossa dimensão nesta Terra a que pertencemos.

Lentamente, o Vera Cruz foi-se encostando ao cais e a agitação das pessoas que nos esperavam e o seu nervosismo quase que se podia sentir à distância de uma amurada.

Pensando bem, o tempo tinha custado mais a passar a eles do que a nós. Sempre terá sido assim entre aquele que parte e o que fica a aguardar. O que partiu é que tem coisas para contar ou para silenciar, às vezes em definitivo, como aquele soldado que trazendo consigo uma doença venérea se suicidou atirando-se ao mar, já à vista de Lisboa, porque não suportou a ideia de um reencontro com a mulher naquela situação.

Quantas coisas não cabem dentro de uma guerra!

Em 1 de Março de 2008… 43 anos depois, reencontrei os meus camaradas de guerra, em Olhão, na Churrasqueira o Franguinho.

Parei o carro no estacionamento em frente do Restaurante onde cerca de trinta senhores, alguns carecas, barrigudos, cabelos brancos, muitos acompanhados das esposas, filhos e netos, fizeram o favor de não de sentarem à mesa antes de eu chegar, eles que já não me reconheciam da mesma forma que eu tive de fazer um grande esforço, maior ou menor conforme os casos, para descobrir nas feições enrugadas e envelhecidas os jovens que tinha deixado 43 anos atrás.

Como foi bom abraçá-los ao fim de uma vida, como sentimos na sinceridade daqueles abraços como tinham sido importantes os 27 meses vividos em conjunto em Angola.

Como foi bom descobrir a existência de um novo laço de afinidade entre as pessoas que tem a ver com o passado, um certo passado…que hoje me parece ter sido, fundamentalmente, uma simples aventura de jovens, em cenários surpreendentes de beleza e exotismo, que teve riscos de vida, momentos de entreajuda, outros de cumplicidade mas muitos, mesmo muitos, de uma enorme naturalidade, sem stress, preocupações, como aqueles que vivi no Lumbala, durante 15 meses, nas margens do Rio Zambeze, onde aprendi a nadar pela simples circunstância de que as águas subiram na época das cheias e eu fiquei sem pé no local onde me banhava com os meus camaradas.

O crocodilo que meses mais tarde me foi dado conhecer e que connosco partilhava aquela zona do rio, ainda que apanhando sol na outra margem, só veio provar que o mundo, sendo pequeno, dá para todos…mas a partir desse dia cada um no seu lugar. Ele, no rio, nós fora dele.

De então para cá, todos os anos nos voltamos a encontrar. São os meus “irmãos” da guerra de Angola, a minha outra família.

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