quinta-feira, maio 30, 2013

A Minha Avó Pequenina


O meu pai foi a primeira pessoa lá na aldeia a ter uma televisão, mesmo antes de qualquer uma das várias tabernas que à noite funcionavam como cafés.

Lembro-me perfeitamente dela: era alemã, marca SABA, rectangular e acastanhada. Estávamos em 1957, ano em que a televisão iniciou as suas emissões em Portugal.

 Colocá-mo-la num armazém que também servia de sala de jantar, em cima de uma pequena mesa, e à sua frente, bancos corridos para as pessoas da aldeia poderem assistir a troco de 5 tostões que o meu pai justificava para a limpeza da sala.

A minha avó tinha direito a tratamento VIP numa cadeirinha de vime, daquelas que eram próprias para as pessoas se sentarem à lareira, colocada na primeira fila, mesmo em frente do aparelho.

Nunca me esquecerei da expressão do seu rosto quando assistia às imagens da televisão que ela, mais que via, admirava.

 Dizia sempre que gostava de ver tudo: as variedades com o Camilo de Oliveira, o teatro com a Dª. Palmira Bastos ou o cinema com o Sr. Vasco Santana, mas percebia-se que tinha uma especial simpatia para com o Sr. Fialho Gouveia que diariamente a olhava nos olhos e lhe lia as notícias, coisa que ela apreciava mais que todos os outros espectáculos.

Um dia, a minha avó adoeceu porque embora sendo uma mulher saudável, de gripes e constipações ninguém estava a salvo, doentes ou saudáveis e por isso, durante 15 dias, não ocupou a cadeirinha que lhe estava reservada em frente da televisão.

Finalmente, sentindo-se melhor, lá foi para o seu lugar porque antes da emissão começar já todos deveriam estar sentados e em silêncio. Da mira técnica passava-se ao hino da televisão e, de seguida, começava a programação a que eu assistia sempre ao lado da minha avó para a poder atender nalguma pergunta que me quisesse fazer, o que era raro.

A minha avó era daquelas velhinhas que gostava de passar despercebida. Em toda a sua vida habituou-se, talvez influenciada pela personalidade dominadora do meu avô, pouco diferente da dos homens da sua geração, a ouvir e calar.

 No caso dela, não só por uma questão cultural mas também por ser essa a sua maneira de estar na vida. Eu adorava-a porque era a minha avó, porque era pequenina e  por estranho que possa parecer, pelos seus silêncios que escondiam um mundo que ela, com o seu quê de mistério, guardava só para si.

Mas nessa primeira noite, depois da ausência de todos aqueles dias, a minha avó parecia-me algo ansiosa, pelo menos não aguardava com a serenidade do costume o início da emissão.

De repente, enchendo-se de coragem e vencendo alguma espécie de pudor, puxou-me para ao pé dela e meio em segredo, confidenciou-me:

- Ah, o Sr. Fialho Gouveia, naturalmente, vai estranhar. Há já quinze dias que não me vê...

Não me lembro do que lhe disse mas a esta distância só espero e desejo que não lhe tenha dito nada.

Mais tarde, já depois de ter morrido, soube através de outras pessoas que ela muito discretamente, com pudor, ajudava com comida as mulheres mais pobres da aldeia quase sem que ninguém se apercebesse. Mais uma razão para aumentar o amor à memória que dela guardava. A minha avó pequenina… como carinhosamente lhe chamava.

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