do Urso de Peluche
“Haverá alguma coisa que nos toque mais a alma do que espreitar uma galáxia distante por um telescópio de
(Michael Shermer)
Será que a religião preenche uma lacuna muito
necessária?
Diz-se frequentemente existir no cérebro uma lacuna
que tem a forma de Deus e que é preciso preencher.
Temos uma necessidade psicológica de Deus – amigo
imaginário, pai, big brother, confessor, confidente – e a necessidade tem de
ser satisfeita quer Deus exista de facto, quer não.
Mas não será
que Deus vem atravancar um espaço que melhor seria que preenchêssemos com outra
coisa? Talvez a ciência? A arte? A amizade humana? O humanismo? O amor por esta
vida, vivida no mundo concreto, sem dar crédito a eventuais vidas para além da
morte? Um amor pela natureza – aqui lo
a que o grande entomólogo E.O. Wilson chamou Biofilia?
Já se apontaram à religião quatro grandes funções na
vida humana: explicação, exortação, consolo e inspiração.
- Historicamente,
a religião aspirou a explicar a nossa existência e a natureza do universo em
que nos inserimos. Nesta função ela foi, entretanto, completamente ultrapassada
pela ciência.
- Por exortação
pretendo dizer a orientação moral sobre o modo como nos devemos comportar.
- Quanto ao
consolo e inspiração abordaremos de seguida mas, à laia de preâmbulo,
começaremos com o fenómeno do «amigo imaginário» da nossa infância que julgo
ter semelhanças com a crença religiosa.
Será o
fenómeno do amigo imaginário uma ilusão de tipo superior, numa categoria
diferente do comum “
faz-de-conta” da infância?
Suspeito que o fenómeno do boneco de peluche da
infância pode ser um bom modelo para compreender a crença teísta dos adultos.
Não sei se os psicólogos já estudaram a questão deste ponto de vista mas seria
digna de investigação.
Companheiro e confidente, um Peluche para a vida: esse
é, seguramente, um papel que Deus desempenha – uma lacuna que perduraria se
Deus desaparecesse.
Outra criança, uma menina, tinha um “homenzinho
púrpura” que lhe parecia uma presença real e visível e que se materializava no
ar com uma cintilação e um suave tinido.
Visitava-a com regularidade, especialmente quando se
sentia sozinha, mas com menor frequência à medida que ela foi crescendo.
Um certo dia, mesmo antes de ir para a escola, o
“homenzinho púrpura” apareceu-lhe, anunciado pelo habitual tinir das
campainhas, para lhe dizer que não voltaria a visitá-la.
Isto entristeceu a menina, mas o homenzinho púrpura disse-lhe
que ela estava a crescer e que no futuro não iria precisar mais dele. Agora
tinha de deixá-la para poder ir cuidar de outras crianças. Prometeu-lhe, no
entanto, que voltaria se ela precisasse dele a sério.
Voltou, de facto, muitos anos mais tarde, num sonho,
numa altura em que ela estava a atravessar uma crise pessoal e a tentar decidir
o que fazer à vida.
A porta do quarto abriu-se e apareceu uma carrada de
livros, empurrada, quarto dentro… pelo “homenzinho de púrpura”.
Ela interpretou isto como sendo um conselho no sentido
de ir para a universidade – conselho que ela seguiu e mais tarde considerou
bom.
É uma história enternecedora que consegue, melhor do
que qualquer outro exemplo, acercar-nos da compreensão do papel consolador e
aconselhador que os deuses imaginários têm na vida das pessoas.
Um ser pode existir apenas na imaginação e, ainda
assim, parecer completamente real à criança, dando-lhe verdadeiro consolo e
bons conselhos.
Mas melhor ainda, é que os amigos – e os deuses
imaginários - têm tempo e paciência para dedicar toda a atenção a quem sofre. E
são muito mais baratos do que os psiqui atras
ou os conselheiros profissionais.
Terão os deuses, nesse seu papel de consoladores e
conselheiros evoluído a partir dos bonecos de peluche por meio de uma espécie
de “pedomorfose” psicológica.
A “pedomorfose” é a
manutenção na idade adulta, de características da infância.
Terão as religiões, originariamente evoluído, ao longo
de gerações, através de um adiamento gradual do momento da vida em que as
crianças põem de parte os bonecos de peluche, do mesmo modo que fomos
abrandando, ao longo da evolução, o achatamento da testa e a protrusão (projecção
para a frente) dos maxilares?
Para completar o quadro, consideremos a possibilidade
inversa. Em vez de serem os deuses a evoluir a partir de bonecos ancestrais,
será possível que esses bonecos terem evoluído de deuses antigos?
Esta ideia parece menos provável.
O psicólogo norte-americano Julien Jaynes observou que
muitas pessoas têm a percepção que os seus próprios processos de pensamento são
como uma espécie de diálogo entre o “eu” e outro protagonista interno, situado
dentro da cabeça.
Hoje em dia compreendemos que ambas as vozes são
nossas e senão o compreendermos somos tratados como doentes mentais.
Foi o que aconteceu, durante um breve período, com
Evelyn Waugh, escritor inglês de personalidade difícil.
Sem papas na língua, como era seu timbre, comentou com
um amigo: «Não te vejo há muito tempo, mas também tenho visto tão pouca gente
porque – não sei se sabias – enlouqueci.»
Depois de recuperar, Evelyn escreveu um romance, “As
Desventuras do Senhor Pinfold”, em que descreve o seu período alucinatório e as
vozes que então ouvia.
O que Jaynes sugere é que antes do ano 1.000 a .c. a generalidade
das pessoas desconhecia que a segunda voz – a que o Sr. Pinfold ouvia – vinha
de dentro de si.
Julgavam-na a voz de um deus.
Jaynes vai mesmo ao ponto de localizar a “voz” dos
deuses no hemisfério do cérebro oposto ao que controla a linguagem.
Terá sido o momento em que as pessoas se deram conta
de que as vozes exteriores que lhes parecia ouvir vinham, efectivamente, de
dentro de si mesmas.
Jaynes considera esta transição histórica como o alvor
da consciência humana.
Os deuses seriam, então, vozes alucinadas que falavam
dentro das cabeças das pessoas.
Assim, e numa espécie de inversão da hipótese da
pedomorfose, os deuses alucinados começaram, primeiro, por desaparecer das
mentes adultas e foram, depois, puxados para trás, para fases cada vez mais
recuadas da infância, até às suas actuais sobrevivências sob a forma de
fenómenos como o boneco de peluche ou o “homenzinho púrpura”. O problema desta
versão é que não explica a persistência dos deuses, hoje, na idade adulta.
Talvez seja melhor não tratar os deuses como
antepassados dos bonecos de peluche ou vice-versa, mas antes encarar ambos como
sub-produtos da mesma predisposição psicológica que têm em comum o poder de
confortar.
Richard Dawkins
(continua: Será Deus um consolo...)
(continua: Será Deus um consolo...)
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