HOJE É
DOMINGO
(Na minha cidade de Santarém)
Fui uma pessoa com sorte…
Sorte… porque nasci em 1939, em
Portugal, um dos poucos locais na Europa que não iria mergulhar em breve numa
guerra devastadora e humilhante para os seus povos.
Sorte… porque numa sociedade
esmagadoramente pobre, nasci filho de uma família de posses que me proporcionou
uma infância onde nada me faltou, inclusivamente o amor de uma mãe e o silêncio
contemplativo e protector de um pai.
Sorte… porque, mais tarde, enquanto
jovem estudante do liceu, passava as férias na aldeia dos meus avós paternos,
na Beira Baixa, o que marcou a minha juventude de tão fortes recordações que
perduram até hoje e não me deixam envelhecer.
Sorte… porque, embora com muitos
sacrifícios, o meu pai me pôde pagar um curso superior que foi o ponto de
partida para uma vida profissional desafogada e tranqui la.
Sorte… porque passei pela experiencia
enriquecedora, do ponto de vista humano, de uma guerra nas florestas do norte
de Angola, sobrevivendo, e desta vez mesmo com muita sorte, às balas que me
foram dirigidas durante uma emboscada na última operação militar que fiz na zona
de guerra.
Sorte… porque, depois de sair da zona de
guerra no Norte de Angola, passei 15 meses em paz, de certo os mais tranqui los e descontraídos da minha vida, nas margens do
rio Zambeze, no Leste, junto da fronteira com a então Zâmbia, em convivência
com o simpático e hospitaleiro povo Luena.
Sorte… porque desses 15 meses passados
na região das imensas planícies, “chanas”, me ficou o cheiro de África e o som
dos tambores nos batuques de sábado, adoçados com hidromel e corpos ritmados e
estremecentes.
Sorte… porque do convívio com o povo Luena
me chegou uma outra percepção da vida, sem passado, presente e futuro mas tão-somente
um presente indefinido que inclui todo o resto.
Sorte… por ter podido revisitar a
história viajando nas picadas de fronteira marcadas a régua e esquadro por Gago
Coutinho em 1914, perante a admiração de manadas de gnus com tão estranhos e
inesperados visitantes.
Sorte… porque tendo atravessado várias
vezes, de noite e sem luar, o Rio Zambeze, com o jeep e o atrelado carregado de
animais de caça, numa jangada montada sobre cinco canoas, apenas uma vez falhámos
o local de chegada na outra banda e nessa noite deslizámos pela margem do rio
abaixo... Ainda chegámos ao quartel para dormir nas nossas camas, muitas horas depois, corpos estafados… mas chegámos... que grande aventura!...
Sorte… por ter visto a maior concentração de búfalos do mundo, em Marromeu, a norte da cidade Beira, em
Moçambique, nos pântanos a que chamam “tandus” – 1.500 Km2 - hoje Reserva Especial de Protecção de Búfalos.
Milhares e milhares deles numa linha negra do horizonte que se ia abrindo para
eu passar no meu Unimog preparado para todo o terreno até atravessar rios, como
aconteceu.
Fantástica viagem essa naquele autêntico
paraíso de biodiversidade, superior a todas as outras, e foram muitas, as que
fiz tanto em Angola como em Moçambique.
Sorte… por ter assistido ao nascimento
de um país chamado Moçambique e ter colaborado, por convite, do Governador da
Frelimo, na preparação dos festejos desportivos para o Dia da Independência, 25
de Junho de 1975.
Sorte… por ter compreendido que nesse
dia estava, involuntariamente, do lado dos vencidos, do lado desagradável da
história e, por pudor, me ter ausentado da minha casa e da cidade. Esse dia não
me pertencia.
Sorte... porque numa sexta-feira do mês de Setembro de 1975 saí da minha casa na cidade da Beira com a roupa que tinha vestida e a chave do meu carro na mão. Meti-me à estrada de Manica e Sofala em direcção à fronteira da Rodésia onde apanhei um avião para Lisboa, via Johannsburgo e Roma.
Sem dramas, sem lágrimas, sem ódios ou ressentimentos. Para trás ficava um país acabado de nascer que iria entrar num período doloroso de anos de uma guerra fratricida, de dor e miséria, mas esse país não era o meu...
Sorte… por ter tido a oportunidade de conhecer, que não em visita turística, o admirável, extenso e pacífico continente africano a Sul do Equador, experimentado o convívio com a natureza primitiva, a mesma que os meus antepassados, no desabrochar da sua evolução, encontraram e à qual fui reconduzido.
Sorte... porque numa sexta-feira do mês de Setembro de 1975 saí da minha casa na cidade da Beira com a roupa que tinha vestida e a chave do meu carro na mão. Meti-me à estrada de Manica e Sofala em direcção à fronteira da Rodésia onde apanhei um avião para Lisboa, via Johannsburgo e Roma.
Sem dramas, sem lágrimas, sem ódios ou ressentimentos. Para trás ficava um país acabado de nascer que iria entrar num período doloroso de anos de uma guerra fratricida, de dor e miséria, mas esse país não era o meu...
Sorte… por ter tido a oportunidade de conhecer, que não em visita turística, o admirável, extenso e pacífico continente africano a Sul do Equador, experimentado o convívio com a natureza primitiva, a mesma que os meus antepassados, no desabrochar da sua evolução, encontraram e à qual fui reconduzido.
Sorte… porque me permitiu viver lado a
lado com os Luenas numa relação de hospitalidade da parte deles e de respeito
da minha. Eles, que me distinguiram com a alcunha de “Saricoje” - “homem bom que não faz distinção entre ricos e
pobres, pretos e brancos” - a mim, que
era apenas um jovem e simples alferes, comandante de um pequeno e isolado
destacamento do exército português de ocupação…
Sorte… por ter sido funcionário do Estado
e como tal ter servido os meus concidadãos que sempre senti como os meus
únicos e anónimos patrões.
Sorte… finalmente, porque a minha
mulher, já nesta via de resto, me “emprestou” as suas duas netas biológicas –
uma de 7 meses, a Matilde, a outra, Filipa, que comemorou ontem, dia 7, o seu 8º aniversário - para serem minhas netas “do coração” e nada como as crianças para
nos adoçar a velhice e preencher a vida, exigindo que continuemos… Elas também
precisam de nós, as nossas histórias alimentarão as suas memórias de criança
como as histórias da minha avó materna alimentaram as minhas.
<< Home