Biólogos discutem até que ponto existe
benevolência entre os seres vivos.
Por Jerónimo Teixeira
A selecção de
parentesco tem sido utilizada para explicar a extraordinária organização que
vemos nos chamados insectos sociais. Se a cooperação em um formigueiro ou em uma
colmeia parece impecável, é porque geralmente todos são filhos da mesma rainha,
o que os torna geneticamente semelhantes. Quando uma abelha operária resolve
colocar ovos – o que raramente ocorre –, suas colegas os destroem, pois o filho
de uma “irmã” será geneticamente mais distante delas do que os filhos da
rainha-mãe.
No formigueiro, as coisas são mais simples: todas as operárias são
estéreis. “Em muitos sentidos, nós, humanos, somos menos cooperativos do que os
insectos sociais”, diz o biólogo Robert Trivers, da Universidade de Rutgers, em Nova Jersey , Estados
Unidos. Mas, complementa ele, é preciso entender que são dois sistemas muito
distintos: “Entre as formigas, há parentesco próximo e, em geral, muito pouco
conflito interno.
Entre nós, há um sistema de altruísmo recíproco com um meio de
troca – o dinheiro – que uniu o mundo inteiro em uma economia interligada, mas
com muito mais conflito interno e muito menos altruísmo”.
Em 1971,
Trivers formulou, com o incentivo de Hamilton, a teoria do altruísmo recíproco,
que é, de forma simplificada, a ideia de que uma mão lava a outra. Para explicar
esses modelos, os biólogos utilizam formulações matemáticas, valendo-se
especialmente da teoria dos jogos, que elabora equações capazes de explicar o
mecanismo de várias formas de disputa social (para saber mais, leia a matéria
“Tudo está em jogo”, na edição de Abril de 2002).
Com a reciprocidade em mente, podemos voltar ao hipotético almoço
do primeiro parágrafo. Afinal, por que somos aparentemente tão generosos com
comida? A sócio-biologia encontra as raízes desse comportamento nos primórdios
do Homo Sapiens, quando ainda vivíamos em tribos de caçadores-colectores. Claro
que não podemos saber como era a organização social do homem primitivo, mas
algumas pistas podem ser buscadas entre os caçadores-coletores do mundo
moderno. Estudos antropológicos têm revelado características comuns mesmo em
culturas geograficamente afastadas, como os ache do Paraguai e os !kung do
deserto de Kalahari, no sul da África. Há uma divisão sexual do trabalho: as
mulheres colectam raízes e frutos; os homens saem à caça. Os vegetais obtidos
pelas mulheres são geralmente consumidos somente pela família; a carne trazida
pelos homens é dividida com a tribo de forma igualitária.
É a reciprocidade em prática: uma vez que o sucesso da caçada
depende não somente de habilidade e esforço, mas também de sorte, é provável
que mesmo um bom caçador muitas vezes termine o dia de mãos vazias. Por isso, é
essencial que ele possa contar com uma porção da caça dos outros. Influi aqui também o fato de a carne ser um bem perecível. O
caçador não seria capaz de comer sozinho um dos mamutes que ainda andavam por
aí quando surgiu o ser humano.
Mas o que impede o Macunaíma da tribo de vadiar enquanto seus
companheiros arriscam-se na caçada? E por que o bom caçador deveria dividir seu
produto de forma tão equitativa? Foi ele quem caçou – por que não ficaria com
pedaço maior? Nesse ponto entra o sistema de recompensas e punições que reforça
o altruísmo recíproco. Recusar-se a dividir carne seria quebrar a etiqueta e
expor-se à vergonha pública. E o bom caçador também tem suas vantagens: é
considerado o homem mais sexy da tribo. Consegue parceiras com mais facilidade,
seja para o casamento, seja para casos extra-conjugais.
Ecossistemas Projetados
Os modelos de
selecção de parentesco e altruísmo recíproco, como se viu, abrem espaço para
algumas formas de altruísmo. Mas quem faz o bem somente aos seus não é generoso
– é nepotista. E podemos qualificar de altruísmo aqui lo
que fazemos com vistas a uma retribuição futura? Fica a sensação de que, sob a
pele de cordeiro do altruísmo, vamos sempre encontrar um lobo egoísta. Aliás, é
exactamente o que afirmou em 1974 o biólogo americano Michael Ghiselin:
“Arranhe um altruísta, e você verá um egoísta sangrar”. A biologia, amparada
pela teoria dos jogos, parece identificar um fundo de interesse em qualquer
gesto desprendido.
Peter Singer, filósofo norte-americano da Universidade de
Princeton, conhecido por sua defesa dos direitos dos animais, certa vez
argumentou que os bancos de sangue seriam uma prova de altruísmo. O sangue estocado
serve igualmente a doadores e não-doadores; portanto, ninguém doa sangue com
vistas a um benefício no futuro.
O biólogo Richard Alexander, da Universidade de Michigan, Estados
Unidos, retorquiu lembrando que olhamos com respeito o sujeito que volta de um
banco de sangue com algodão e adesivo no braço. A retribuição vem na forma
do reconhecimento social.
Mais recentemente, porém, alguns cientistas voltaram a admitir a
selecção de grupo. É o que diz o biólogo David Sloan Wilson, da Universidade
Estadual de Nova York: “Não há dúvida de que o preconceito contra a selecção de
grupo está diminuindo, mas em um ritmo terrivelmente lento e baseado mais em
factores sociológicos do que intelectuais. A maior parte dos manuais ainda a
trata como heresia, fundamentando-se em obras escritas antes de o estudante
universitário médio ter nascido”. A selecção de grupo foi, para ele, uma força
poderosa (mas não única) na evolução da espécie humana.
Sloan Wilson trabalhou em parceira com o filósofo Elliott Sober,
da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, para compor Unto Others (“Para os
outros”, sem tradução em português), uma defesa da selecção em “múltiplos
níveis”. O livro recorda que o próprio William Hamilton, tido como o papa da
selecção individual, admitiu a selecção de grupo em um trabalho de 1975. A proposta básica de
Unto Others é a de que selecção individual e de grupo podem coexistir, ainda que
trabalhem em sentidos opostos – daí a expressão “selecção em múltiplos níveis”.
Já vimos que o altruísta, sendo o único a pagar a conta da bondade, sacrifica a
própria aptidão reproductiva em prol dos demais e portanto tende a desaparecer.
Sloan Wilson e Sober demonstram matematicamente que isso é verdade apenas para
a selecção individual. Uma proporção maior de altruístas pode trazer vantagens
adaptativas para o grupo, que assim terá melhores chances na competição com
rivais.
A selecção de grupo já foi utilizada com sucesso nas granjas.
Descobriu-se que os melhores resultados são obtidos seleccionando para
reprodução não as galinhas que individualmente põem mais ovos, mas os grupos de
galinhas mais produtivos. Mais recentemente, Wilson está utilizando esses
princípios para pesqui sar
ecossistemas microbiais em conjunto com seu aluno William Swenson. Eles criam
comunidades com biliões de micróbios de diferentes espécies. Depois, seleccionam
aqueles que apresentam propriedades como, por exemplo, a capacidade de decompor
lixo tóxico. Os resultados, diz Wilson, têm sido positivos e abrem a
possibilidade de, no futuro, projectarmos ecossistemas inteiros. “Os
experimentos levam a selecção de grupo um passo adiante, pois lidam com
ecossistemas de múltiplas espécies”, diz Wilson.
“Sem dúvida, as abordagens do gene egoísta e da selecção em
múltiplos níveis são equi valentes.
As duas estão corretas”, diz o físico e biólogo Rob Boyd, da Universidade da
Califórnia, Estados Unidos. As divergências parecem dizer respeito não aos
fatos, mas à interpretação. Um exemplo é o caso da divisão da carne em tribos
de caçadores-colectores. Em
Unto Others , Sober e Sloan Wilson partem dos mesmos dados
etnográficos, mas reformulam as perguntas. Afinal, por que surgiria um sistema
de punições e retribuições para encorajar a generosidade do caçador? Os dois
autores dizem que, na medida em que os actos de punir e recompensar também
envolvem algum custo – embora menor do que o esforço despendido em uma caçada
–, eles também poderiam ser considerados altruístas.
Para Boyd, a evolução cultural pode ser tão importante quanto a
genética na evolução do altruísmo. De certo modo, ele as considera como duas
forças inextrincáveis no desenvolvimento social de nossa espécie – afinal, a
sofisticação linguística que é a base da cultura humana não seria possível se a
capacidade de aprender uma língua não estivesse codificada em nosso genoma. De
outra parte, muitos dos mecanismos emocionais que dão base a nosso sistema
moral – a culpa ou a vergonha, por exemplo – podem ter sido depurados pela
selecção natural ao longo de nossa evolução como primatas sociais.
Na medida em
que nos agrupamos em tribos maiores, com uma divisão do trabalho mais complexa
e especializada, a necessidade de cooperação extrapolou os limites da família e
nos obrigou a cooperar com estranhos. Essas novas exigências sociais teriam
exercido sua pressão sobre a selecção entre grupos humanos, favorecendo o
surgimento da moral. “A cultura está nos genes, mas os genes também dependem da
cultura”, resume Boyd.
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