Episódio
Nº 103
Foi pelo mar, num navio
negro cheio de luzes. Se ela estivesse ali eles se amariam no silêncio do mato.
O negro olha as estrelas. Quem sabe se dos Reis não está olhando estas mesmas
estrelas?
Estrela está em todo o
lugar. Serão as mesmas? – pensa António Balduíno. Dos Reis está vendo esta
estrela e Lindinalva também. Quando pensa em Lindinalva se aborrece. Porque está
pensando nela? Ela é branca, tem sardas no rosto, e não dá ousadia a um negro
como ele.
É melhor pensar em Zéqui nha estendido no barro com um punhal nas costas,
que pensar em Lindinalva que odeia o negro. Se ela soubesse que ele está ali
fugido, sem dúvida contaria à polícia.
Dos Reis o esconderia, mas
Lindinalva não. António Balduíno abre os lábios grossos num sorriso porque se
lembra que Lindinalva não sabe de nada e não poderia denunciá-lo.
Fica irritado contra as
estrelas que o fazem pensar em Lindinalva. Viriato , o Anão, tinha raiva das
estrelas. Uma vez lhe dissera. Quando? António Balduíno não se recordava.
Viriato quase só conversava sobre a sua tristeza de ser sozinho. E um dia
entrou pelo caminho do mar, como aquele outro velho que foi retirado da água
numa noite em que os homens do cais carregavam um navio sueco.
Será que Viriato encontrou
a sua casa? O Gordo diz que quem se mata vai para o inferno. Mas o Gordo é
maluco, não sabe o que diz. António Balduíno está com saudades do Gordo.
O Gordo também não sabe
nada, não sabe que ele matou Zéqui nha
com uma punhalada nas costas. Fazia já qui nze
dias que o Gordo se fora, cheio de saudades da avó que não tinha, na Baía, quem
lhe desse comida na boca.
O Gordo é muito bom,
incapaz de dar uma punhalada em alguém. Nunca foi homem para uma briga. António
Balduíno se lembra perfeitamente dos dias de infância mendigando na Baía.
O Gordo sabia pedir
esmolas como nenhum. Mas para brigar não servia. Filipe, o Belo, ria dele. Era
bonito, Filipe o Belo. Quando ele morreu debaixo do automóvel, no dia do seu
aniversário, todo o mundo chorou.
O seu enterro pareceu
enterro de rico. As mulheres da rua de Baixo levaram flores. Uma francesa velha
chorava. Era a mãe de Filipe. E tinham vestido nele uma roupa bonita de
casimira e tinham posto uma gravata nova.
Filipe devia ter ficado
contente. Ele era elegante, gostava de uma gravata… António Balduíno brigou uma
vez por causa dele. Sorri ao se recordar do facto.
Fora uma surra bonita que
dera no Sem Dentes. Sem Dentes também viera com um canivete em cima dele e ele
não puxara arma nenhuma.
Com Zéqui nha ele puxara o punhal. Agora ele está certo que
não gostava de Zéqui nha, que
implicara com aquela cara desde o primeiro dia. E se não fosse ele que o
apunhalasse, outro o apunhalaria.
O negro Filomeno também
tinha uma sede danada por Zéqui nha. E
tudo aqui lo por causa de Arminda. Para
que Zéqui nha se amigou com ela? Eles
tinham chegado antes.
Na noite da sentinela, António
Balduíno só não a levou para casa porque a morta não o largava com aqueles
olhos inchados.
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