MORTE DE
QUINCAS
BERRO
BERRO
DÁGUA
Episódio Nº 2
Não sei se esse mistério da morte (ou
das sucessivas mortes) de Quincas Berro Dágua pode ser completamente decifrado.
Mas eu o tentarei, como ele próprio aconselhava, pois o importante é tentar, mesmo
o impossível.
II
Os patifes que contavam, pelas ruas e
ladeiras, em frente ao mercado e na Feira de Água dos Meninos, os momentos
finais de Quincas (até um folheto com versos de pé quebrado foi composto pelo
repentista Cuica de Santo Amaro e vendido largamente), desrespeitavam assim a
memória do morto, segundo a família.
E memória de morto, como se sabe, é
coisa sagrada, não é para estar na boca pouco limpa de cachaceiros, jogadores e
contrabandistas de maconha.
Nem para servir de rima pobre a cantadores
populares na estrada do Elevador Lacerda, por onde passa tanta gente de bem,
inclusive colegas de repartição de Leonardo Barreto, humilhado genro de
Quincas.
Quando um homem morre, ele se reintegra
em sua respeitabilidade a mais autêntica, mesmo tendo cometido loucuras em sua
vida.
A morte apaga com a sua mão de ausência,
as manchas do passado e a memória do morto fulge como diamante. Essa, a tese da
família, aplaudida por vizinhos e amigos.
Segundo eles, Quincas Berro Dágua, ao morrer, voltara a ser aquele
antigo e respeitável Joaqui m Soares,
da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da Mesa de Rendas Estadual, de
passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sob o braço,
ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a política, jamais
visto em botequi m, de cachaça
caseira e comedida.
Em realidade, num esforço digno de todos
os aplausos, a família conseguira que assim brilhasse, sem jaca, a memória de
Quincas desde alguns anos, ao decretá-lo morto para a sociedade.
Dele, falavam do passado se, obrigados
pelas circunstâncias, a ele se referiam.
Infelizmente, porém, algum vizinho, um
colega qualquer de Leonardo, amiga faladeira de Vanda (a filha envergonhada),
encontrava Quincas ou dele sabia por intermédio de terceiros.
Era como se um morto se levantasse do
túmulo para macular a própria memória: estendido bêbedo, ao sol, em plena manhã
alta, nas imediações da rampa do Mercado ou sujo e maltrapilho, curvado sobre
cartas sebentas no Átrio da Igreja do Pilar ou ainda cantando com voz rouquenta
na Ladeira de São Miguel, abraçado a negras e mulatas de má vida. Um horror!
Quando, finalmente, naquela manhã, um
santeiro estabelecido na Ladeira do Tabuão chegou aflito à pequena porém bem
arrumada casa da família Barreto e comunicou à filha Vanda e ao genro Leonardo
estar Quincas definitivamente espichado, morto em sua pocilga miserável, foi um
suspiro de alívio que se elevou uníssono dos peitos dos esposos.
De agora em diante já não seria a
memória do aposentado funcionário da Mesa de Rendas Estadual perturbada e
arrastada na lama pelos actos inconsequentes do vagabundo em que ele se
transformara no fim da vida.
Chegara o tempo do merecido descanso. Já
poderiam falar livremente de Joaqui m
Soares da Cunha, louvar-lhe a conduta de funcionário, de esposo e pai, de
cidadão, apontar suas virtudes às crianças como exemplo, ensiná-las a amar a
memória do avô, sem receio de qualquer perturbação.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home