domingo, janeiro 19, 2014

Largo do Seminário
HOJE

É 

DOMINGO

(Na minha cidade de Santarém em 19/1/14)








«Escrevo-vos um dia depois de ter morrido e à medida que me vou distanciando do mundo e da vida, sinto alívio, uma espécie de satisfação final, a última satisfação. É bom morrer de velhice, desprendemo-nos lentamente, as amarras esboroando-se de gastas incapazes de nos segurar … a vontade perdendo-se.

Não me lembro do nascimento, tomamos consciência da nossa vida muito tarde num processo de auto-descobertas progressivas, por vezes dolorosas, adiando dentro de nós próprios a sensação da felicidade ou de realização pessoal que vai alimentando, quase sempre ilusoriamente, o desejo e a alegria de estarmos vivos e, dessa forma, a vida vai passando porque ilusão e realidade se confundem.

O processo da velhice começa com o enfraquecimento gradual dos laços que nos prendem à vida numa preparação subtil, inteligente, como é próprio da natureza que só por acidente é violenta.

O melhor da vida foi sempre o amanhã que nunca chegou, mas desejá-lo, esperá-lo, foi o verdadeiro combustível que alimentou cada dia, cada minuto. O que é mau há-de acabar o que é bom chegará…

Vive-se agora muito tempo… revêmo-nos, para além dos netos, nos bisnetos que nos embalam no fim com os seus sorrisos e prolongam os dias.

Recordo a minha sogra, a quem eu chamava a “minha princesa” que aos oitenta e seis anos, debilitada pelo cancro, no leito do hospital, já quase não dava sinais de vida. Um beijo de despedida da bisneta Filipa e eis que retoma a vida, pede um pratinho de sopa e continua por mais uns dias até que com um sorriso de bondade nos pede para sermos muito felizes e adormece para sempre.

Deste lado, olhamos para o mundo sem saudade mas com preocupação, pelos netos e bisnetos, os nossos e os de todos os avôs e bisavôs. O mundo está uma confusão, a humanidade que fez progressos inimagináveis no mundo da ciência continua sem se entender a si própria.

De crise em crise chegámos à globalização que está a apressar a transformação do mundo. A Europa parece indecisa, o meu país uma incógnita.

Eliminámos fronteiras, estamos agora tão próximos uns dos outros que isto mais parece uma aldeia, mas persistem os males que sempre minaram as sociedades: a cobiça, a ambição, o ódio pelas diferenças e as crenças assassinas, tudo filhos dos nossos genes egoístas.

Em breve me esfumarei após esta pausa graciosa para um lugar em parte alguma de onde há anos vim. Agradeço ter tido uma vida tranquila que nem a guerra em África foi suficiente para quebrar. O acaso, mais que eu próprio, driblou por mim o que poderiam ter sido, em algumas situações, percalços graves… foi amigo.

Sim… de queixas, ficaram os afectos baralhados, o amor que chegou sempre desencontrado, mas a circunstância de ter ameaçado já terá sido consolador.

Ficou essa mágoa que não terá sido pequena para quem, como eu, sempre valorizou o aspecto romântico da vida mas quando percebemos, com o tempo e a experiência, toda a complexidade desse sentimento, perguntamo-nos como teria sido se o tivéssemos concretizado.

Insisti na amizade, como espécie de desforra e estou satisfeito comigo, tanto quanto é possível estar conhecendo as fraquezas e defeitos da nossa natureza.

Deixo o mundo, como sempre ele foi, sofrendo do mesmos males: desigualdades muito para além das que seriam naturais e a velha exploração dos ricos e poderosos pelos pobres e mais frágeis.

Mas progrediu-se, gerações atrás terá sido pior. Percebe-se que há um caminho que vai no bom sentido. Os cristãos têm agora um chefe, desperto, atento à realidade da vida na terra e denunciador dos males essenciais do mundo. É uma voz importante mas não sei se capaz de ser escutada e principalmente seguida.

Como dizia a “minha princesa”: sejam felizes.»

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