sábado, janeiro 18, 2014

O grito de um animal ferido de morte....
A MORTE

E A MORTE

DE QUINCAS

BERO DÀGUA



Episódio Nº 15



Então Quincas Berro Dágua fazia seu solene juramento: reservara ao mar a honra da sua hora derradeira, de seu momento final.

Não haviam de prendê-lo em sete palmos de terra, ah! isso não! Exigiria, quando a hora chegasse, a liberdade do mar, as viagens que não fizera em vida, as travessias mais ousadas, os feitos sem exemplo.

Mestre Manuel, sem nervos e sem idade, o mais valente dos mestres de saveiro, sacudia a cabeça aprovando. Os demais a quem a vida ensinara a não duvidar de nada, concordavam também, tomavam mais um travo de pinga.

Pinicavam os violões, cantavam a magia das noites no mar, a sedução fatal de Janaína. O velho marinheiro cantava mais alto que todos.

Como fora então morrer num quarto da Ladeira do Tabuão? Era coisa de não se acreditar, os mestres de saveiro escutavam a notícia sem conceder-lhe completo crédito.

Quincas Berro Dágua era dado a mistificações, mais de uma vez embrulhara meio mundo.

Os jogadores de porrinha, de ronda, do sete- e-meio, suspendiam as emocionantes partidas, desinteressados dos lucros, apatetados.

Não era Berro Dágua o seu indiscutível chefe? Caía sobre eles a sombra da tarde como luto fechado. Nos bares, nos botequins, nos balcões das vendas e armazéns, onde quer que se bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irremediável.

Quem sabia beber melhor do que ele, jamais completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante, quanto mais aguardente emborcava?

Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as nuances de cor, de gosto e de perfume.

Há quantos anos não tocava em água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro Dágua.

Não que seja facto memorável ou excitante história. Mas vale a pena contar o caso, pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de “berro dágua” incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas.

Entrara ele na venda de Lopez, simpático espanhol, na parte externa do Mercado. Freguês habitual, conquistara o direito de servir-se sem o auxílio do empregado.

Sobre o balcão viu uma garrafa, transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a placidez da manhã no Mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda em seus profundos alicerces.

O grito de um animal ferido de morte, de homem traído e desgraçado:

 - Águuuuuuuua!

Imundo, asqueroso espanhol de má fama! Corria gente de todos os lados, alguém estava com certeza a ser assassinado, os fregueses da venda riam às gargalhadas.

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