O grito de um animal ferido de morte.... |
A MORTE
E A MORTE
DE QUINCAS
BERO DÀGUA
Episódio Nº 15
Então Quincas Berro Dágua fazia seu
solene juramento: reservara ao mar a honra da sua hora derradeira, de seu
momento final.
Não haviam de prendê-lo em sete palmos
de terra, ah! isso não! Exigiria, quando a hora chegasse, a liberdade do mar,
as viagens que não fizera em vida, as travessias mais ousadas, os feitos sem
exemplo.
Mestre Manuel, sem nervos e sem idade, o
mais valente dos mestres de saveiro, sacudia a cabeça aprovando. Os demais a quem
a vida ensinara a não duvidar de nada, concordavam também, tomavam mais um
travo de pinga.
Pinicavam os violões, cantavam a magia
das noites no mar, a sedução fatal de Janaína. O velho marinheiro cantava mais
alto que todos.
Como fora então morrer num quarto da
Ladeira do Tabuão? Era coisa de não se acreditar, os mestres de saveiro
escutavam a notícia sem conceder-lhe completo crédito.
Quincas Berro Dágua era dado a
mistificações, mais de uma vez embrulhara meio mundo.
Os jogadores de porrinha, de ronda, do
sete- e-meio, suspendiam as emocionantes partidas, desinteressados dos lucros,
apatetados.
Não era Berro Dágua o seu indiscutível
chefe? Caía sobre eles a sombra da tarde como luto fechado. Nos bares, nos botequi ns, nos balcões das vendas e armazéns, onde quer
que se bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da
perda irremediável.
Quem sabia beber melhor do que ele,
jamais completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante, quanto mais
aguardente emborcava?
Capaz como ninguém de adivinhar a marca,
a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as nuances de
cor, de gosto e de perfume.
Há quantos anos não tocava em água?
Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro Dágua.
Não que seja facto memorável ou
excitante história. Mas vale a pena contar o caso, pois foi a partir desse
distante dia que a alcunha de “berro dágua” incorporou-se definitivamente ao
nome de Quincas.
Entrara ele na venda de Lopez, simpático
espanhol, na parte externa do Mercado. Freguês habitual, conqui stara o direito de servir-se sem o auxílio do
empregado.
Sobre o balcão viu uma garrafa,
transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo,
cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a
placidez da manhã no Mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda em seus
profundos alicerces.
O grito de um animal ferido de morte, de
homem traído e desgraçado:
-
Águuuuuuuua!
Imundo, asqueroso espanhol de má fama!
Corria gente de todos os lados, alguém estava com certeza a ser assassinado, os
fregueses da venda riam às gargalhadas.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home