Quincas ajeitou-se melhor no caixão... |
A MORTE
E A MORTE
DE QUINCAS
BERRO DÁGUA
Episódio Nº 13
Fisionomia melancólica, fitou o cadáver. Sapatos
lustrosos onde brilhava a luz das velas, calça de vinco perfeito, paletó negro
assentando, as mãos devotas cruzadas no peito.
Pousou os olhos no rosto barbeado. E levou um choque,
o primeiro.
Viu o sorriso. Sorriso cínico, imoral, de quem se
divertia. O sorriso não havia mudado, contra ele nada tinham obtido os
especialistas da funerária.
Também ela, Vanda, esquecera-se de recomendar-lhes, de
pedir uma fisionomia mais a carácter, mais de acordo com a solenidade da morte.
Continuava aquele sorriso de Quincas Berro Dágua e, diante desse sorriso de
mofa e gozo, de que adiantavam sapatos novos – novos em folha enquanto o pobre
Leonardo tinha de mandar botar, pela segunda vez, meias solas nos seus – de que
adiantavam roupa negra, camisa alva, barba feita, cabelo engomado, mãos postas
em oração?
Porque Quincas ria daqui lo
tudo, um riso que se ia ampliando, alargando, que aos poucos ressoava na
pocilga imunda. Ria com os lábios e com os olhos, a fitarem o monte de roupa
suja e remendada, esquecida num canto pelos homens da funerária.
O sorriso de Quincas Berro Dágua.
E Vanda ouviu, as sílabas destacadas com nitidez
insultante, no silêncio fúnebre:
- Jararaca!
Assustou-se Vanda, seus olhos fuzilaram como os de
Octacília, mas seu rosto tornou-se pálido. Era a palavra que ele usava, como
uma cuspidela, quando, no início dessa loucura, buscavam, ela e Octacília,
reconduzi-lo ao conforto da casa, aos hábitos estabelecidos, à perdida
decência.
Nem agora, morto e estirado no caixão, com velas aos
pés, vestido de boas roupas, ele se entregava. Ria com a boca e com os olhos, não
era de admirar se começasse a assobiar.
E, além do mais, um dos polegares – o da mão esquerda –
não estava devidamente cruzado sobre o outro, elevava-se no ar. Anárqui co e debochativo.
- Jararaca! – disse de novo, e assobiou gaiatamente.
Vanda estremeceu na cadeira, passou a mão no rosto –
será que estou enlouquecendo? – sentiu faltar-lhe o ar, o calor fazia-se
insuportável, sua cabeça rodava.
Uma respiração ofegante na escada: tia Marocas, as
banhas soltas, penetrava no quarto. Viu a sobrinha descomposta na cadeira, lívida,
os olhos pregados na boca do morto.
Você esta abatida, menina. Também com o calor que faz
nesse cubículo…
Ampliou-se o sorriso canalha de Quincas ao enxergar o
vulto monumental da irmã. Vanda qui s
tapar os ouvidos, sabia, por experiência anterior, com que palavras ele amava
definir Marocas, mas que adiantam mãos sobre as orelhas para conter voz de
morto? Ouviu:
- Saco de peidos!
Marocas, mais descansada da subida, sem olhar sequer o
cadáver, escancarou a janela:
- Botaram
perfume nele? Está um cheiro de tontear.
Pela janela aberta, o ruído da rua entrou, múltiplo e
alegre, a brisa do mar apagou as velas e veio beijar a face de Quincas, a
claridade estendeu-se sobre ele, azul e festiva. Vitorioso sorriso nos lábios,
Quincas ajeitou-se melhor no caixão.
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