quarta-feira, fevereiro 12, 2014

À época em que tudo aconteceu, há mais de trinta anos...
OS VELHOS

MARINHEIROS

Episódio Nº 3









Zé Canjiquinha nunca foi encontrado, em compensação Dondoca ficou, desde aquela bem-sucedida visita, sob a protecção da justiça, anda hoje nos trinques, ganhou a casinha no beco das Três Borboletas, Pedro Torresmo deixou definitivamente de trabalhar.

Eis aí uma verdade que o farol do juiz não ilumina, foi-me necessário mergulhar no poço para buscá-la. Aliás, para tudo contar, a inteira verdade, devo acrescentar ter sido agradável, deleitoso mergulho, pois no fundo desse poço estava o colchão de lã de barriguda do leito de Dondoca onde ela me conta — depois que abandono, por volta das dez da noite, a prosa erudita do meritíssimo e de sua volumosa consorte — divertidas intimidades do preclaro magistrado, infelizmente impróprias para letra de fôrma.

Possuo, como se comprova, certa experiência no assunto, não
é a primeira vez que investigo a verdade. Sinto-me assim, sob a inspiração do juiz — “é dever de todos nós procurar a verdade de cada facto” —, disposto a desenrolar o novelo das aventuras do comandante, esclarecendo de vez e para sempre questão tão discutida e complicada. Não se trata apenas das linhas embaraçadas de um novelo: é bem mais difícil.

 Pelo meio existem nós cegos, nós de marinheiro, pontas soltas, pedaços cortados, linha de outra cor, coisas acontecidas e coisas imaginadas e onde a verdade de tudo isso? Na época em que tudo sucedeu, há mais de trinta anos passados, em 1929, as aventuras do comandante e ele próprio eram o centro da vida de Periperi, dando lugar a ardentes discussões, dividindo a população, provocando inimizades e rancores,
quase uma guerra santa.

 De um lado os partidários do comandante, seus admiradores incondicionais, de outro lado seus detractores, à frente o velho Chico Pacheco, fiscal do consumo aposentado, ainda hoje memória recordada entre sorrisos, língua de prata, ferina, homem irreverente e céptico.

 A tudo isso, porém, chegaremos com tempo e paciência, a
busca da verdade requer não somente decisão e carácter mas também boa vontade e método. Por ora ainda estou na borda do poço, procurando a melhor forma de descer ao misterioso fundo.

E já o velho Chico Pacheco sai de sua cova em remoto cemitério para me atrapalhar, impor sua presença, perturbar-me. Sujeito quizilento e metediço, com a mania da evidência, amigo de mostrar-se, sua ambição era ser o primeiro desse florido burgo suburbano, onde tudo é doce e manso, mesmo o mar, mar de golfo onde jamais se elevam ondas furiosas, praia sem vagas e sem correntezas, vida pacífica e lenta.

Meu desejo, meu único desejo, acreditem!, é ser objectivo e
sereno. Buscar a verdade em meio à polémica, desenterrá-la do passado, sem tomar partido, arrancando das versões mais diferentes todos os véus da fantasia capazes de encobrir, mesmo em parte, a nudez da verdade.

 Se bem eu tenha tido ocasião de constatar em carne própria, ou melhor na carne doirada de Dondoca, nem sempre ser mais sedutora a completa nudez do que aquela que se mostra e se esconde sob um lençol ou um trapo qualquer a ocultar um seio, um pedaço de perna, a curva de uma anca. Mas a verdade, afinal!, não é para deitar com ela numa cama que a buscamos com tanta teimosia e desespero por esse mundo afora.

Site Meter