No miserê, Doutor Juiz, no miserê... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 2
Mas,
como duvidar da palavra de homem de tanto saber, as estantes entulhadas de livros,
códigos e tratados? No entanto, por mais que ele me explique tratar-se apenas
de um provérbio popular, muitas vezes encontro-me a pensar nesse poço,
certamente profundo e escuro, onde foi a verdade esconder sua nudez,
deixando-nos na maior das confusões, a discutir a propósito de um tudo ou de um
nada, causando-nos a ruína, o desespero e a guerra.
Poço
não é poço, fundo de um poço não é o fundo de um poço,
na
voz do provérbio isso significa que a verdade é difícil de revelar-se, sua nudez não se exibe na praça
pública ao alcance de qualquer mortal. Mas é o nosso dever, de todos nós,
procurar a verdade de cada fato, mergulhar na escuridão do poço até encontrar sua
luz divina.
“Luz
divina”, é do juiz, como aliás todo o parágrafo anterior.
Ele
é tão culto que fala em tom de discurso, gastando palavras
bonitas,
mesmo nas conversas familiares com sua digníssima esposa, dona Ernestina.
“A verdade é o farol que ilumina minha vida”, costuma
repetir-se o meritíssimo, de dedo em riste, quando, à noite, sob um céu de
incontáveis estrelas e pouca luz eléctrica, conversamos sobre as novidades do
mundo e de nosso subúrbio.
Dona
Ernestina, gordíssima, lustrosa de suor e um tanto quanto débil mental,
concorda balançando a cabeça de elefante. Um farol de luz poderosa, iluminando
longe, eis a verdade do nobre juiz de direito aposentado.
Talvez
por isso mesmo sua luz não penetre nos escaninhos mais próximos, nas ruas de
canto, no escondido beco das Três
Borboletas
onde se abriga, na discreta meia-sombra de uma casinha entre árvores, a formosa
e risonha mulata Dondoca, cujos pais procuraram o meritíssimo quando Zé Canjiqui nha desapareceu da circulação, viajando para o
sul.
Passara
Dondoca nos peitos, na frase pitoresca do velho Pedro
Torresmo,
pai aflito, e largara a menina ali, sem honra e sem dinheiro:
—
No miserê, doutor juiz, no miserê…
O
juiz deitou discurso moral, coisa digna de ouvir-se, prometeu providências. E,
à vista do tocante quadro da vítima a sorrir entre lágrimas, afrouxou um
dinheirinho, pois, sob o peito duro da camisa engomada do magistrado, pulsa,
por mais difícil que seja acreditar-se, pulsa um bondoso coração.
Prometeu
expedir ordem de busca e apreensão do “sórdido dom-juan”, esquecendo-se, no
entusiasmo pela causa da virtude ofendida, de sua condição de aposentado, sem
promotor nem delegado às ordens.
Interessaria
no caso, igualmente, seus amigos da cidade. O “conqui stador
barato” teria a paga merecida…
E
foi ele próprio, tão cônscio é o dr. Siqueira de suas responsabilidades de juiz
(embora aposentado), dar notícias das providências à família ofendida e pobre,
na moradia distante.
Dormia Pedro Torresmo, curando a cachaça da
véspera; labutava no qui ntal, lavando
roupa, a magra Eufrásia, mãe da vítima, e a própria cuidava do fogão.
Desabrochou um sorriso nos lábios carnudos de
Dondoca, tímido mas expressivo, o juiz fitou-a austero, tomou-lhe da mão:
—
Venho pra repreendê-la…
—
Eu não queria. Foi ele… — choramingou a formosa.
—
Muito malfeito — segurava-lhe o braço de carne rija.
Desfez-se
ela em lágrimas arrependidas e o juiz, para melhor
repreendê-la
e aconselhá-la, sentou-a no colo, acariciou-lhe as faces, beliscou-lhe os
braços.
Admirável quadro: a severidade implacável do
magistrado temperada pela bondade compreensiva do homem. Escondeu Dondoca o
rosto envergonhado no ombro confortador, seus lábios faziam cócegas inocentes
no pescoço lustre.
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