terça-feira, fevereiro 11, 2014

No miserê, Doutor Juiz, no miserê...
OS VELHOS 

MARINHEIROS

Episódio Nº 2




Mas, como duvidar da palavra de homem de tanto saber, as estantes entulhadas de livros, códigos e tratados? No entanto, por mais que ele me explique tratar-se apenas de um provérbio popular, muitas vezes encontro-me a pensar nesse poço, certamente profundo e escuro, onde foi a verdade esconder sua nudez, deixando-nos na maior das confusões, a discutir a propósito de um tudo ou de um nada, causando-nos a ruína, o desespero e a guerra.

Poço não é poço, fundo de um poço não é o fundo de um poço,
na voz do provérbio isso significa que a verdade é difícil de  revelar-se, sua nudez não se exibe na praça pública ao alcance de qualquer mortal. Mas é o nosso dever, de todos nós, procurar a verdade de cada fato, mergulhar na escuridão do poço até encontrar sua luz divina.

“Luz divina”, é do juiz, como aliás todo o parágrafo anterior.
Ele é tão culto que fala em tom de discurso, gastando palavras
bonitas, mesmo nas conversas familiares com sua digníssima esposa, dona Ernestina.

 “A verdade é o farol que ilumina minha vida”, costuma repetir-se o meritíssimo, de dedo em riste, quando, à noite, sob um céu de incontáveis estrelas e pouca luz eléctrica, conversamos sobre as novidades do mundo e de nosso subúrbio.

Dona Ernestina, gordíssima, lustrosa de suor e um tanto quanto débil mental, concorda balançando a cabeça de elefante. Um farol de luz poderosa, iluminando longe, eis a verdade do nobre juiz de direito aposentado.

Talvez por isso mesmo sua luz não penetre nos escaninhos mais próximos, nas ruas de canto, no escondido beco das Três
Borboletas onde se abriga, na discreta meia-sombra de uma casinha entre árvores, a formosa e risonha mulata Dondoca, cujos pais procuraram o meritíssimo quando Zé Canjiquinha desapareceu da circulação, viajando para o sul.

Passara Dondoca nos peitos, na frase pitoresca do velho Pedro
Torresmo, pai aflito, e largara a menina ali, sem honra e sem dinheiro:

— No miserê, doutor juiz, no miserê…

O juiz deitou discurso moral, coisa digna de ouvir-se, prometeu providências. E, à vista do tocante quadro da vítima a sorrir entre lágrimas, afrouxou um dinheirinho, pois, sob o peito duro da camisa engomada do magistrado, pulsa, por mais difícil que seja acreditar-se, pulsa um bondoso coração.

Prometeu expedir ordem de busca e apreensão do “sórdido dom-juan”, esquecendo-se, no entusiasmo pela causa da virtude ofendida, de sua condição de aposentado, sem promotor nem delegado às ordens.

Interessaria no caso, igualmente, seus amigos da cidade. O “conquistador barato” teria a paga merecida…

E foi ele próprio, tão cônscio é o dr. Siqueira de suas responsabilidades de juiz (embora aposentado), dar notícias das providências à família ofendida e pobre, na moradia distante.

 Dormia Pedro Torresmo, curando a cachaça da véspera; labutava no quintal, lavando roupa, a magra Eufrásia, mãe da vítima, e a própria cuidava do fogão.

 Desabrochou um sorriso nos lábios carnudos de Dondoca, tímido mas expressivo, o juiz fitou-a austero, tomou-lhe da mão:

— Venho pra repreendê-la…

— Eu não queria. Foi ele… — choramingou a formosa.

— Muito malfeito — segurava-lhe o braço de carne rija.

Desfez-se ela em lágrimas arrependidas e o juiz, para melhor
repreendê-la e aconselhá-la, sentou-a no colo, acariciou-lhe as faces, beliscou-lhe os braços.

 Admirável quadro: a severidade implacável do magistrado temperada pela bondade compreensiva do homem. Escondeu Dondoca o rosto envergonhado no ombro confortador, seus lábios faziam cócegas inocentes no pescoço lustre.

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