segunda-feira, fevereiro 10, 2014

OS VELHOS 

MARINHEIROS










Continuando na senda da obra de Jorge Amado, para mim o melhor contador de histórias e criador de inesquecíveis e típicas personagens da língua portuguesa, definitivamente morto Quincas Berro Dágua, essa figura invulgar do universo baiano, passemos aos Velhos Marinheiros ou Capitão de Longo Curso publicado em 1961.

Vasco Moscoso de Aragão desembarca em Periperi, litoral baiano. Sua farda de marinheiro, seus mapas, o cachimbo e o telescópio viram atracções na pequena cidade. Além dos instrumentos náuticos que fascinam os moradores, a população local se deixa conquistar também pelas histórias contadas pelo Capitão-de-Longo-Curso.

São narrativas que dão notícia de países longínquos e portos distantes como Marselha, Nova York, Hong Kong, Xangai, Calcutá. São fatos admiráveis e aventureiros como o enfrentamento de tempestades e tubarões do mar Vermelho, naufrágios em ilhas remotas, amores trágicos e pecaminosos.

Nesta narrativa contada em tom de histórias de marinheiro, Jorge Amado apresenta um quadro de costumes da sociedade baiana do começo do século XX. Ali, na pacata localidade do litoral, convivem doutores ilustres, ricos comerciantes, senhoras de respeito, aposentados, funcionários públicos e desocupados.

Dentro desse universo comum, sobressai o comandante, com suas experiências extraordinárias. A vida no mar lhe ensinou conhecimentos que extrapolam a navegação: afloram também suas qualidades de homem honrado, de exímio jogador de póquer e de conquistador romântico. De uma hora para outra, Periperi encontrou um herói.

Mas o comandante não tarda a despertar inveja e desconfiança. Convencido de que o Comandante é um falsário, o fiscal aposentado Chico Pacheco vai investigar a vida atribulada de Vasco Moscoso de Aragão.

Em Os Velhos Marinheiros, Jorge Amado contrapõe a vida regrada e repetitiva do quotidiano ao mundo aventureiro dos marinheiros, em que não se distinguem verdade e fantasia, sonho e realidade, a tensão do acontecido e a beleza do narrado.

Mas, vamos à história:



PRIMEIRO EPISÓDIO


DA CHEGADA DO COMANDANTE AO SUBÚRBIO DE PERIPERI, NA BAÍA, DO RELATO DE SUAS MAIS FAMOSAS AVENTURAS NOS CINCO OCEANOS, EM MARES E PORTOS LONGÍNQUOS, COM RUDES MARINHEIROS E MULHERES APAIXONADAS E DA INFLUÊNCIA DO CRONÓGRAFO E DO TELESCÓPIO SOBRE A PACATA COMUNIDADE SUBURBANA E DE COMO O NARRADOR, COM CERTA EXPERIÊNCIA ANTERIOR E AGRADÁVEL, DISPÕE-SE A RETIRAR A VERDADE DO FUNDO DO POÇO.



Episódio Nº 1


Minha intenção, minha única intenção, acreditem! é apenas restabelecer a verdade. A verdade completa, de tal maneira que nenhuma dúvida persista em torno do comandante Vasco
Moscoso de Aragão e de suas extraordinárias aventuras.

“A verdade está no fundo de um poço”, li certa vez, não me
lembro mais se num livro ou num artigo de jornal. Em todo caso em letra de fôrma, e como duvidar de afirmação impressa? Eu, pelo menos, não costumo discutir, muito menos negar, a literatura e o jornalismo.

 E, como se isso não bastasse, várias pessoas gradas repetiram-me a frase, não deixando sequer margem para um erro de revisão a retirar a verdade do poço, a situá-la em melhor abrigo: paço (“a verdade está no paço real”) ou colo (“a verdade se esconde no colo das mulheres belas”), pólo (“a verdade fugiu para o Pólo Norte”) ou povo (“a verdade está com o povo”).

Frases, todas elas, parece-me, menos grosseiras, mais elegantes, sem deixar essa obscura sensação de abandono e frio inerente à palavra “poço”.

O Meritíssimo Dr. Siqueira, juiz aposentado, respeitável e probo cidadão, de lustrosa e erudita careca, explicou-me tratar-se de um lugar-comum, ou seja, coisa tão clara e sabida a ponto de transformar-se num provérbio, num dito de todo mundo.

Com sua voz grave, de inapelável sentença, acrescentou curioso detalhe: não só a verdade está no fundo de um poço, mas lá se encontra inteiramente nua, sem nenhum véu a cobrir-lhe o corpo, sequer as partes vergonhosas. No fundo do poço e nua.

O dr. Alberto Siqueira é o cimo, o ponto culminante da cultura nesse subúrbio de Periperi onde habitamos. É ele quem pronuncia o discurso do Dois de Julho na pequena Praça e o de Sete de Setembro no grupo escolar, sem falar noutras datas menores e em brindes de aniversário e baptizado. Ao juiz devo muito do pouco que sei, a essas conversas nocturnas no passeio de sua casa; devo-lhe respeito e gratidão.

 Quando ele, com a voz solene e o gesto preciso, esclarece-me uma dúvida, naquele momento tudo parece-me claro e fácil, nenhuma objecção me assalta. Depois que o deixo, porém, e ponho-me a pensar no assunto, vão-se a facilidade e a evidência, como, por exemplo, nesse caso da verdade.

Volta tudo a ser obscuro e difícil, busco recordar as explicações do Meritíssimo e não consigo. Uma trapalhada.

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