Me enterro como entender... |
A MORTE
E A MORTE
DE QUINCAS
BERRO
DÁGUA
Episódio Nº 33 e Último
Mestre Manuel já não os esperava àquela hora. Estava no fim da peixada, comida ali mesmo na rampa, não iria sair barra fora quando apenas marítimos rodeavam o caldeirão de barro. No fundo, ele não chegara em nenhum momento a acreditar na notícia da morte de Quincas e, assim, não se surpreendeu ao vê-lo de braço com Quitéria.
O velho
marinheiro não podia falecer em terra, num leito qualquer.
– Ainda tem arraia pra todo mundo...
Suspenderam as velas do saveiro, puxaram
a grande pedra que servia de âncora. A lua fizera do mar um caminho de prata,
ao fundo recortava-se na montanha a cidade negra da Bahia. O saveiro foi-se
afastando devagar. A voz de Maria Clara elevou-se num canto marinheiro:
No fundo do mar te achei toda vestida
de conchas...
Rodeavam o caldeirão fumegante. Os
pratos de barro se enchiam. Arraia mais perfumada, moqueca de dendê e pimenta.
A garrafa de cachaça circulava. Cabo Martim não perdia jamais a perspectiva e a
clara visão das necessidades prementes.
Mesmo comandando a briga, conseguira
surrupiar umas garrafas, escondê-las sob os vestidos das mulheres. Apenas
Quincas e Quitéria não comiam: na popa do saveiro, deitados, ouviam a canção de
Maria Clara, a formosa do Olho Arregalado dizia palavras de amor ao velho
marinheiro.
– Por que pregar susto na gente, Berrito
desgraçado? Tu bem sabe que tenho o coração fraco, o médico recomendou que eu
não me aborrecesse. Cada ideia tu tem, como posso viver sem tu, homem com parte
com o tinhoso?
Tou acostumada com tu, com as coisas malucas que tu diz, tua
velhice sabida, teu jeito tão sem jeito, teu gosto de bondade. Por que tu me
fez isso hoje? – e tomava da cabeça ferida na peleja, beijava-lhe os olhos de
malícia.
Quincas não respondia: aspirava o ar marítimo, uma de suas mãos tocava a água, abrindo um risco nas ondas. Tudo foi tran
Mas inesperadas nuvens vieram do Sul, engoliram a lua cheia. As estrelas começaram a apagar-se e o vento a fazer-se frio e perigoso. Mestre Manuel avisou:
Pensava ele trazer o saveiro para o cais
antes que caísse a tempestade.
Era, porém, amável a cachaça, gostosa a
conversa, havia ainda muita arraia no caldeirão, boiando no amarelo do
azeite-de-dendê, e a voz de Maria Clara dava uma dolência, um desejo de demorar
nas águas. Ao demais, como interromper o idílio de Quincas e Quitéria naquela
noite de festa?
Foi assim que o temporal, o vento
uivando, as águas encrespadas, os alcançou em viagem. As luzes da
Bahia brilhavam na distância, um raio rasgou a escuridão. A chuva começou a
cair. Pitando seu cachimbo, Mestre Manuel ia ao leme.
Ninguém sabe como Quincas se pôs de pé,
encostado à vela menor. Quitéria não tirava os olhos apaixonados da figura do
velho marinheiro, sorridente para as ondas a lavar o saveiro, para os raios a
iluminar o negrume.
Mulheres e homens se seguravam às cordas, agarravam-se às
bordas do saveiro, o vento zunia, a pequena embarcação ameaçava soçobrar a cada
momento. Silenciara a voz de Maria Clara, ela estava junto do seu homem na
barra do leme.
Pedaços de mar lavavam o barco, o vento
tentava romper as velas. Só a luz do cachimbo de Mestre Manuel persistia, e a
figura de Quincas, de pé, cercado pela tempestade, impassível e majestoso, o
velho marinheiro.
Aproximava-se o saveiro lenta e dificilmente das águas mansas
do quebra-mar. Mais um pouco e a festa recomeçaria.
Foi quando cinco raios sucederam-se no
céu, a trovoada reboou num barulho de fim do mundo, uma onda sem tamanho
levantou o saveiro.
Gritos escaparam das mulheres e dos homens, a gorda Margô
exclamou:
– Valha-me Nossa Senhora!
No meio do ruído, do mar em fúria, do
saveiro em perigo, à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase
derradeira.
Penetrava o saveiro nas águas calmas do
quebra-mar, mas Quincas ficara na tempestade, envolto num lençol de ondas e
espuma, por sua própria vontade.
XII
NÃO houve jeito da agência funerária
receber o esqui fe de volta, nem pela
metade do preço. Tiveram de pagar, mas Vanda aproveitou as velas que sobraram.
O caixão está até hoje no armazém de Eduardo, esperançoso ainda de vendê-lo a
um morto de segunda mão. Quanto à frase derradeira há versões variadas. Mas
quem poderia ouvir direito no meio daquele temporal? Segundo um trovador do
Mercado, passou-se assim:
No meio da confusão Ouviu-se Quincas
dizer:
"– Me enterro como entender Na hora que resolver. Podem guardar seu
caixão Pra melhor ocasião. Não vou deixar me prender Em cova rasa no
chão."
E foi impossível saber o resto de sua oração.
FIM
Rio, abril de 1959
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