sábado, fevereiro 08, 2014

Me enterro como entender...
A MORTE
E A MORTE
DE QUINCAS
BERRO
DÁGUA


Episódio Nº 33 e Último






Mestre Manuel já não os esperava àquela hora. Estava no fim da peixada, comida ali mesmo na rampa, não iria sair barra fora quando apenas marítimos rodeavam o caldeirão de barro. No fundo, ele não chegara em nenhum momento a acreditar na notícia da morte de Quincas e, assim, não se surpreendeu ao vê-lo de braço com Quitéria.

 O velho marinheiro não podia falecer em terra, num leito qualquer.

– Ainda tem arraia pra todo mundo...

Suspenderam as velas do saveiro, puxaram a grande pedra que servia de âncora. A lua fizera do mar um caminho de prata, ao fundo recortava-se na montanha a cidade negra da Bahia. O saveiro foi-se afastando devagar. A voz de Maria Clara elevou-se num canto marinheiro:

No fundo do mar te achei toda vestida de conchas...

Rodeavam o caldeirão fumegante. Os pratos de barro se enchiam. Arraia mais perfumada, moqueca de dendê e pimenta. A garrafa de cachaça circulava. Cabo Martim não perdia jamais a perspectiva e a clara visão das necessidades prementes.

Mesmo comandando a briga, conseguira surrupiar umas garrafas, escondê-las sob os vestidos das mulheres. Apenas Quincas e Quitéria não comiam: na popa do saveiro, deitados, ouviam a canção de Maria Clara, a formosa do Olho Arregalado dizia palavras de amor ao velho marinheiro.

– Por que pregar susto na gente, Berrito desgraçado? Tu bem sabe que tenho o coração fraco, o médico recomendou que eu não me aborrecesse. Cada ideia tu tem, como posso viver sem tu, homem com parte com o tinhoso?

Tou acostumada com tu, com as coisas malucas que tu diz, tua velhice sabida, teu jeito tão sem jeito, teu gosto de bondade. Por que tu me fez isso hoje? – e tomava da cabeça ferida na peleja, beijava-lhe os olhos de malícia.

Quincas não respondia: aspirava o ar marítimo, uma de suas mãos tocava a água, abrindo um risco nas ondas. Tudo foi tranquilidade no início da festa: a voz de Maria Clara, a beleza da peixada, a brisa virando vento, a lua no céu, o murmurar de Quitéria.

Mas inesperadas nuvens vieram do Sul, engoliram a lua cheia. As estrelas começaram a apagar-se e o vento a fazer-se frio e perigoso. Mestre Manuel avisou:


– Vai ser noite de temporal, é melhor voltar.

Pensava ele trazer o saveiro para o cais antes que caísse a tempestade. 

Era, porém, amável a cachaça, gostosa a conversa, havia ainda muita arraia no caldeirão, boiando no amarelo do azeite-de-dendê, e a voz de Maria Clara dava uma dolência, um desejo de demorar nas águas. Ao demais, como interromper o idílio de Quincas e Quitéria naquela noite de festa?

Foi assim que o temporal, o vento uivando, as águas encrespadas, os alcançou em viagem. As luzes da Bahia brilhavam na distância, um raio rasgou a escuridão. A chuva começou a cair. Pitando seu cachimbo, Mestre Manuel ia ao leme.

Ninguém sabe como Quincas se pôs de pé, encostado à vela menor. Quitéria não tirava os olhos apaixonados da figura do velho marinheiro, sorridente para as ondas a lavar o saveiro, para os raios a iluminar o negrume.

Mulheres e homens se seguravam às cordas, agarravam-se às bordas do saveiro, o vento zunia, a pequena embarcação ameaçava soçobrar a cada momento. Silenciara a voz de Maria Clara, ela estava junto do seu homem na barra do leme.

Pedaços de mar lavavam o barco, o vento tentava romper as velas. Só a luz do cachimbo de Mestre Manuel persistia, e a figura de Quincas, de pé, cercado pela tempestade, impassível e majestoso, o velho marinheiro. 

Aproximava-se o saveiro lenta e dificilmente das águas mansas do quebra-mar. Mais um pouco e a festa recomeçaria.

Foi quando cinco raios sucederam-se no céu, a trovoada reboou num barulho de fim do mundo, uma onda sem tamanho levantou o saveiro. 

Gritos escaparam das mulheres e dos homens, a gorda Margô exclamou:

– Valha-me Nossa Senhora!

No meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira.

Penetrava o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria vontade.

XII

NÃO houve jeito da agência funerária receber o esquife de volta, nem pela metade do preço. Tiveram de pagar, mas Vanda aproveitou as velas que sobraram.

O caixão está até hoje no armazém de Eduardo, esperançoso ainda de vendê-lo a um morto de segunda mão. Quanto à frase derradeira há versões variadas. Mas quem poderia ouvir direito no meio daquele temporal? Segundo um trovador do Mercado, passou-se assim:

No meio da confusão Ouviu-se Quincas dizer: 

"– Me enterro como entender Na hora que resolver. Podem guardar seu caixão Pra melhor ocasião. Não vou deixar me prender Em cova rasa no chão."

E foi impossível saber o resto de sua oração.

FIM

Rio, abril de 1959

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