domingo, fevereiro 23, 2014

Largo do Seminário
HOJE
É
DOMINGO

(Na minha cidade de Santarém 23/2/14)





No preciso momento em que escrevo estas linhas, um pouco por todo o mundo, haverá cristãos ajoelhados em preces, judeus a recitar a Tora, muçulmanos a rezar voltados para Meca, hindus a banharem-se nas águas sagradas do Ganges, monges budistas a meditar...

No entanto, eu, que faço parte dessa massa enorme de sete mil milhões de pessoas descendente de um pequeno grupo de antepassados que há uns setenta mil anos saíram de África para ocuparem e dominarem o planeta Terra eliminando toda a concorrência, se fizer outro tanto, se me quiser meter na pele de um cristão, por exemplo, que me está mais perto, sinto-me estranho e ridículo.

Não digo isto de forma sarcástica ou pretensamente superior, não, afirmo-o simplesmente na minha qualidade de não crente, uma realidade diferente embora respeitando todas as pessoas, familiares, amigos e desconhecidos que são religiosos praticantes ou simplesmente crentes.

Na minha qualidade de não crente nem posso alegar, tão pouco, a ausência de uma herança religiosa, de uma educação católica, que me foi dada pela minha mãe e restante família e continuou depois da instrução primária num dos melhores colégios de jesuítas de Lisboa.

Lembro-me bem dos retiros religiosos, da leitura das histórias dos santos, das rezas a toda a hora, das confissões, das comunhões e, especialmente, dos pequenos almoços que nos eram oferecidos, de pão com uma manteiga caseira feita com o leite lá da quinta onde o colégio começou a funcionar porque, como é sabido, não se podia tomar o Senhor que não fosse em jejum.

Não voltei, na vida, a comer manteiga tão saborosa... nem parecida.

Recordo, igualmente, uma excursão a Fátima no âmbito das actividades religiosas promovidas pelo colégio e a inevitável procissão das velas a Nossa Senhora de Fátima a encerrar as cerimónias.

Eu e os meus colegas, meninos entre os 11 e 13 anos, seguíamos todos a trás uns dos outros integrados na coluna dos crentes, cada um com uma vela acesa na mão cantando o Avé... Avé... Avé Maria.

Talvez porque aquilo era demasiado soturno para as nossas idades, começamos a cantar, no meio da procissão, uma outra letra com aquela música que alguns da minha geração ainda recordam.

 - “A caminho da Califórnia vai um chato aos trambolhões perguntar ao cara... onde ficam os colh...”.

Quando os padres que acompanhavam ao lado a procissão, umas vezes mais à frente, outras mais atrás, estranhavam aquela sonoridade e se aproximavam, logo regressávamos ao Ave...Avé... Avé Maria.

Dormimos nessa noite no edifício de um seminário do qual lembro os quartos contíguos, de seis camas cada e que abriam todos para um corredor longo, escuro e silencioso.

Às tantas, um de nós levantava-se, chegava-se à porta e gritava para o corredor a plenos pulmões:

 - “Meia-noite, hora de tormentos e aflições, um morto levanta-se da cama e grita: quem quer limões?”

Depressa aparecia um padre vigilante que nos encontrava mergulhados num sono profundíssimo...

Eu não sei se a Senhora de Fátima tinha sentido de humor mas, lá do céu, devia estar divertidíssima ou terrivelmente desiludida com as maluqueiras daqueles cachopos...

Fui buscar estas relíquias ao meu passado remoto para demonstrar que a fé religiosa e o culto do sagrado não faziam parte das nossas vidas de crianças.

Num ambiente de permanente brincadeira era difícil que saltasse uma centelha, uma faísca, pequena que fosse, de fervor religioso porque ele não estava lá, não fazia parte da na nossa natureza, e ainda éramos umas dúzias de meninos de boas e ricas famílias, todas elas tementes a Deus...

Não, o sagrado não tinha nascido connosco e à tentativa de o impingirem naquelas tenras idades a resposta era a galhofa.

No romance de Dostoyevsky “Os Irmãos Karamazov”, Ivan exclama para o irmão:

 - “Não aceito este mundo de Deus e, embora saiba que exista, não aceito de todo. Não é que não aceite Deus, tens de compreender, é o mundo que ele criou que não quero nem consigo aceitar”.

Estranha contradição: aceita Deus mas renega a sua obra, num exercício mental difícil de compreender porque o mundo que ele não aceita está aí, estampado diariamente nas páginas dos jornais, enquanto que Deus é uma entidade desconhecida, conceito abstracto, inatingível...

A verdade passava completamente ao lado de Ivan Karamazov...

Há apenas duas posições:

 - Existe uma inteligência sobre-humana e sobrenatural que concebeu e criou de um modo deliberado o universo e tudo o que nele há, incluindo nós;

E outra posição, a dos não crentes:

 - Qualquer inteligência criadora, dotada de complexidade suficiente para conceber o que quer que seja, só pode passar a existir enquanto produto final de um longo e gradual processo de evolução.

Deus é uma auto-ilusão. Ele nunca poderia ser responsável pelo homem pois que este “chegou” muito recentemente ao convívio com os restantes seres vivos... exactamente no fim  “desse longo e gradual processo de evolução”.

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