Louvavam-se a sua educação, seus modos... |
Os velhos
Marinheiros
Episódio nº 14
Naquela noite enluarada, esqueceram o enterro matinal de Doninha
Barata, ansiosos de espiar o céu, de descobrir os segredos do espaço, de ver as
montanhas da Lua, sua misteriosa face, de reconhecer estrelas aprendidas em
distantes salas de aulas. Todos desejavam, numa jovialidade de rapazes,
procurar o Cruzeiro do Sul.
Dias depois descobririam outra e não menos apaixonante utilidade do
telescópio. Apontavam-no, pelas manhãs na direcção da praia concorrida de
Plataforma, examinavam - oitenta vezes aumentados - os detalhes dos corpos das
mulheres no banho de mar. Disputavam, entre risadas, a vez de olhar,
cochichavam-se safadezas.
Pareciam adolescentes. Foram-se habituando a vir à casa do comandante
espiar o céu, ouvir histórias. O comandante preparava um grogue saboroso,
receita aprendida de um velho lobo-do-mar, nas bandas de Hong-Kong.
Levava meia hora a aprontá-lo com a ajuda da mulata Balbina. Era todo
um ritual. Esquentavam água numa chaleira, queimavam açúcar numa pequena
frigideira. Descascavam uma laranja, picavam a casca em pedacinhos.
Tomava então o comandante de uns copos azuis e grossos (pesados para
não tombarem com o jogo do navio), depositava em cada um deles um pouco de
açúcar queimado, um trago de água, outro de conhaque português, enfeitava com a
casca de laranja. A princípio apenas Adriano Meira e Emílio Fagundes e,
naturalmente, Zequi nha Curvelo atreviam-se a beber tão estranho álcool.
Mas, como afirmassem ser gostoso
e fraco, “isso serve até como remédio”, garantia Zequi nha,
foram-se aventurando, estalavam os lábios, e até o velho José Paulo, o abstémio
Marreco que jamais tocava em bebida, qui s
um dia provar e ficou freguês.
Sentavam-se nas cadeiras de oleado, saboreando, em pequenos goles, a
perfumada bebida. Quando se davam conta já passava das nove, por vezes até das nove
e meia da noite. O resto da história ficava para o dia seguinte, na estação ou na
praça.
Não tardou e o comandante era o cidadão mais importante e popular de
Periperi. Sua fama estendia-se pelos outros subúrbios. Louvavam-se sua
educação, seus modos, sua exuberante cordialidade, sua falta de pose. Pessoa
tão importante, tratava, no entanto, todo mundo bem, fosse rico ou pobre, não
se dava ares.
Ao chegar a noite de céu fechado, ameaçando chuva, Rui Pessoa, o da
Mesa de Rendas, não pôde conter a curiosidade e perguntou ao comandante por que
deixara a profissão ainda relativamente moço: antes dos sessenta anos, pois
sessenta viera de completar e já se aposentara há três ou quatro. Ainda poderia
navegar uns dez anos pelo menos, por que não?.. .
O comandante depositou seu copo na borda da mesa, estava sentado, fitou
o horizonte carregado de nuvens, seu rosto tornou-se sério e quase triste. Não
falou logo. Com os olhos percorreu o grupo de amigos como a julgar se mereciam
a confidencia. Zequi nha Curvelo sentiu-se
nervoso.
Talvez Rui Pessoa houvesse sido indiscreto. Um homem como o comandante
teria, fatalmente, seus segredos enterrados nas profundezas da alma, o dever
dos amigos era respeitar seu silêncio. Ia mudar de conversa quando o comandante
levantou-se, deu dois passos em direcção à janela e disse:
- Por causa de uma mulher, por que podia ser?.. . Apontava o Benedict
em sua caixa de vidro:
- Eu comandava esse “barqui nho”,
fazíamos a rota da Austrália. Jamais qui s
me casar, já lhes disse. Preferia uma paixão aqui ,
outra acolá, no deus-dará das escalas...
Uma francesa em Marselha, uma turca em Istambul, uma russa em Odessa,
chinesa em Xangai, uma hindu em Calcutá. Loucuras de amor, corações partidos, e a
solidão do navio na noite do mar.
Eram tantas que jamais qui sera
tatuar nenhum nome no peito ou no braço, como fazem muitos marítimos. Assentava
nomes e endereços num caderno, de muitas guardara fotografias, mechas de
cabelos, uma peça íntima de roupa, o som cristalino de uma risada, a emoção de
uma lágrima a rolar na despedida.
Mas nem isso possuía mais, pois quando a conhecera e amara, a bordo do
Benedict, sacrificou-lhe o caderno com nomes e endereços, quase um mapa-múndi,
e as lembranças concretas de todas as demais.
Chamava-se Dorothy, era morena e magra, os cabelos rebeldes a
tombarem-lhe no rosto, as pernas longas, uma boca inqui eta,
uma certa angústia nos olhos. De humor variável, ora doce e tímida, como
criança, ora áspera e fugidia, sentindo-se ameaçada por todos.
Viajava com o marido, um ser amorfo, dono de grandes fábricas não sei
de que, preocupado com cifras e negócios, indiferente à beleza da esposa e à
angústia que habitava seus olhos. Estavam dando a volta ao mundo, ele para
repousar, ela tentando, como confessara depois, encontrar seu destino. Pela
noite ficava debruçada na amurada, perscrutando as águas.
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