terça-feira, fevereiro 25, 2014

Louvavam-se a sua educação, seus modos...
Os velhos 

Marinheiros



Episódio nº 14









Naquela noite enluarada, esqueceram o enterro matinal de Doninha Barata, ansiosos de espiar o céu, de descobrir os segredos do espaço, de ver as montanhas da Lua, sua misteriosa face, de reconhecer estrelas aprendidas em distantes salas de aulas. Todos desejavam, numa jovialidade de rapazes, procurar o Cruzeiro do Sul.

Dias depois descobririam outra e não menos apaixonante utilidade do telescópio. Apontavam-no, pelas manhãs na direcção da praia concorrida de Plataforma, examinavam - oitenta vezes aumentados - os detalhes dos corpos das mulheres no banho de mar. Disputavam, entre risadas, a vez de olhar, cochichavam-se safadezas.

Pareciam adolescentes. Foram-se habituando a vir à casa do comandante espiar o céu, ouvir histórias. O comandante preparava um grogue saboroso, receita aprendida de um velho lobo-do-mar, nas bandas de Hong-Kong.

Levava meia hora a aprontá-lo com a ajuda da mulata Balbina. Era todo um ritual. Esquentavam água numa chaleira, queimavam açúcar numa pequena frigideira. Descascavam uma laranja, picavam a casca em pedacinhos.

Tomava então o comandante de uns copos azuis e grossos (pesados para não tombarem com o jogo do navio), depositava em cada um deles um pouco de açúcar queimado, um trago de água, outro de conhaque português, enfeitava com a casca de laranja. A princípio apenas Adriano Meira e Emílio Fagundes e, naturalmente, Zequinha Curvelo  atreviam-se a beber tão estranho álcool.

 Mas, como afirmassem ser gostoso e fraco, “isso serve até como remédio”, garantia Zequinha, foram-se aventurando, estalavam os lábios, e até o velho José Paulo, o abstémio Marreco que jamais tocava em bebida, quis um dia provar e ficou freguês.

Sentavam-se nas cadeiras de oleado, saboreando, em pequenos goles, a perfumada bebida. Quando se davam conta já passava das nove, por vezes até das nove e meia da noite. O resto da história ficava para o dia seguinte, na estação ou na praça.

Não tardou e o comandante era o cidadão mais importante e popular de Periperi. Sua fama estendia-se pelos outros subúrbios. Louvavam-se sua educação, seus modos, sua exuberante cordialidade, sua falta de pose. Pessoa tão importante, tratava, no entanto, todo mundo bem, fosse rico ou pobre, não se dava ares.

Ao chegar a noite de céu fechado, ameaçando chuva, Rui Pessoa, o da Mesa de Rendas, não pôde conter a curiosidade e perguntou ao comandante por que deixara a profissão ainda relativamente moço: antes dos sessenta anos, pois sessenta viera de completar e já se aposentara há três ou quatro. Ainda poderia navegar uns dez anos pelo menos, por que não?.. .

O comandante depositou seu copo na borda da mesa, estava sentado, fitou o horizonte carregado de nuvens, seu rosto tornou-se sério e quase triste. Não falou logo. Com os olhos percorreu o grupo de amigos como a julgar se mereciam a confidencia. Zequinha Curvelo sentiu-se nervoso.

Talvez Rui Pessoa houvesse sido indiscreto. Um homem como o comandante teria, fatalmente, seus segredos enterrados nas profundezas da alma, o dever dos amigos era respeitar seu silêncio. Ia mudar de conversa quando o comandante levantou-se, deu dois passos em direcção à janela e disse:

- Por causa de uma mulher, por que podia ser?.. . Apontava o Benedict em sua caixa de vidro:

- Eu comandava esse “barquinho”, fazíamos a rota da Austrália. Jamais quis me casar, já lhes disse. Preferia uma paixão aqui, outra acolá, no deus-dará das escalas...

Uma francesa em Marselha, uma turca em Istambul, uma russa em Odessa, chinesa em Xangai, uma hindu em Calcutá. Loucuras de amor, corações partidos, e a solidão do navio na noite do mar.

Eram tantas que jamais quisera tatuar nenhum nome no peito ou no braço, como fazem muitos marítimos. Assentava nomes e endereços num caderno, de muitas guardara fotografias, mechas de cabelos, uma peça íntima de roupa, o som cristalino de uma risada, a emoção de uma lágrima a rolar na despedida.

Mas nem isso possuía mais, pois quando a conhecera e amara, a bordo do Benedict, sacrificou-lhe o caderno com nomes e endereços, quase um mapa-múndi, e as lembranças concretas de todas as demais.

Chamava-se Dorothy, era morena e magra, os cabelos rebeldes a tombarem-lhe no rosto, as pernas longas, uma boca inquieta, uma certa angústia nos olhos. De humor variável, ora doce e tímida, como criança, ora áspera e fugidia, sentindo-se ameaçada por todos.

Viajava com o marido, um ser amorfo, dono de grandes fábricas não sei de que, preocupado com cifras e negócios, indiferente à beleza da esposa e à angústia que habitava seus olhos. Estavam dando a volta ao mundo, ele para repousar, ela tentando, como confessara depois, encontrar seu destino. Pela noite ficava debruçada na amurada, perscrutando as águas.

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