O relógio de bordo chamava-se cronógrafo |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 13
Aquela grande sala de janelas abertas
sobre as águas, onde tanta festa animada se realizara nos últimos veraneios, as
meninas Cordeiro e suas amigas a voltearem nos braços dos rapazes,
transformara-se por completo.
Desaparecidos os jarros de flores, o piano
onde Adélia massacrava valsas e foxes, a vitrola, os móveis pretensiosos, a
sala parecia agora torre de comando de um navio, a ponto de Leminhos, delicado
do estômago, sentir enjôo e ânsia de vómito quando ali entrava.
A escada de cordas, dependurada de uma
janela, conduzia diretamente à praia e Zequi nha
Curvelo, candidato a comissário de bordo, projectava um dia entrar e sair por
ali, quando melhorasse de seu doloroso reumatismo.
No centro da parede, os diplomas, em
molduras ricas, datando de vinte e três anos passados. Num deles estava escrito
e sacramentado, pela assinatura de antigo capitão dos portos, ter Vasco Moscoso
de Aragão se sujeitado a todos os exames e provas exigidas para a obtenção do
título de capitão de longo curso que lhe dava direito a comandar qualquer
espécie e tipo de navio de Marinha Mercante pelos mares e oceanos.
Há vinte e três anos, ainda relativamente
jovem, aos trinta e sete de idade, obtivera ele seu diploma de comandante.
Jovem de idade mas já um velho marinheiro, pois, como contava, começara menino
de dez anos, grumete num moroso cargueiro, e escalara os postos um a um, até
chegar a primeiro-piloto, a imediato.
Inúmeras vezes mudara de navio, amava
ver novas terras e correr os mares, viajara sob as mais diversas bandeiras,
envolvera-se em aventuras de guerra e de amor.
Mas, quando, aos trinta e sete
anos, se encontrara apto para candidatar-se ao posto de capitão de longo curso,
voltara à Baía, pois ali, em
sua Capitania dos Portos, queria obter o cobiçado título.
Desejava que seu porto de origem, onde estivessem registadas sua condição e
sua capacidade, fosse o cais de Salvador, de onde partira menino para a
aventura do mar. Também ele tinha suas superstições, afirmava sorrindo.
Protestava Zequi nha: aquela fora uma
nobre atitude, a revelar o patriotismo do comandante, vindo do Oriente para dar
seus exames na Bahia- “Aliás, sem falsa modéstia, com certo brilhantismo”,
esclarecia o capitão de longo curso. Assim lhe dissera entusiasmado, por
ocasião das provas, o Comandante Georges Dias Nadreau, então capitão dos
portos, hoje almirante ilustre da nossa gloriosa Marinha de Guerra.
Na outra moldura, o diploma de Cavaleiro
da Ordem de Cristo, a importante condecoração lusitana, honraria, com direito a
medalha e colar, conferida ao comandante por D. Carlos I, Rei de Portugal e
Algarves, pelos seus relevantes serviços ao comércio marítimo.
Sentava-se numa
cadeira de abrir e fechar, dessas de bordo com assento e recosto de oleado, ao
lado da roda do leme, o cachimbo na mão, o olhar perdido além das janelas.
Numa
larga mesa, o globo enorme e giratório, vários instrumentos de navegação:
bússola, anemómetro, sextante, higrómetro. A grande luneta negra: enxergava-se
a cidade da Baia ali pertinho.
A paralela para traçar rumos e a admirada colecção
de cachimbos, pela qual sentiam-se todos apaixonados. O relógio de bordo
chamava-se cronógrafo.
Nas paredes, os mapas de navegação,
cartas dos oceanos, das baías e golfos, das ilhas perdidas. Sobre um móvel onde
o comandante guardava copos e bebidas, numa enorme caixa de vidro, a reprodução
de um paquete, “um gigante dos mares, meu inesquecível "Benedict”, o último dos
muitos nos quais embarcara e navegara, seu derradeiro barco.
Ampliadas fotos de
outros navios, de diverso tamanho e diferentes nacionalidades, emolduradas,
algumas coloridas. Cada um daqueles navios representava um pedaço da vida do
Comandante Vasco Moscoso de Aragão, recordava-lhe histórias, casos, alegrias e
longas noites solitárias.
E o telescópio. Foi uma sensação quando
o viram armado, sua luneta apontada para o céu. “Aumenta oitenta vezes o
tamanho da Lua”, anunciava Zequi nha
Curvelo, numa crescente intimidade com os instrumentos, os navios enquadrados,
o comandante.
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