segunda-feira, fevereiro 24, 2014

O relógio de bordo chamava-se cronógrafo
OS VELHOS 

MARINHEIROS

Episódio Nº 13










Aquela grande sala de janelas abertas sobre as águas, onde tanta festa animada se realizara nos últimos veraneios, as meninas Cordeiro e suas amigas a voltearem nos braços dos rapazes, transformara-se por completo.

Desaparecidos os jarros de flores, o piano onde Adélia massacrava valsas e foxes, a vitrola, os móveis pretensiosos, a sala parecia agora torre de comando de um navio, a ponto de Leminhos, delicado do estômago, sentir enjôo e ânsia de vómito quando ali entrava.

A escada de cordas, dependurada de uma janela, conduzia diretamente à praia e Zequinha Curvelo, candidato a comissário de bordo, projectava um dia entrar e sair por ali, quando melhorasse de seu doloroso reumatismo.

No centro da parede, os diplomas, em molduras ricas, datando de vinte e três anos passados. Num deles estava escrito e sacramentado, pela assinatura de antigo capitão dos portos, ter Vasco Moscoso de Aragão se sujeitado a todos os exames e provas exigidas para a obtenção do título de capitão de longo curso que lhe dava direito a comandar qualquer espécie e tipo de navio de Marinha Mercante pelos mares e oceanos.

 Há vinte e três anos, ainda relativamente jovem, aos trinta e sete de idade, obtivera ele seu diploma de comandante. Jovem de idade mas já um velho marinheiro, pois, como contava, começara menino de dez anos, grumete num moroso cargueiro, e escalara os postos um a um, até chegar a primeiro-piloto, a imediato.

Inúmeras vezes mudara de navio, amava ver novas terras e correr os mares, viajara sob as mais diversas bandeiras, envolvera-se em aventuras de guerra e de amor.

Mas, quando, aos trinta e sete anos, se encontrara apto para candidatar-se ao posto de capitão de longo curso, voltara à Baía, pois ali, em sua Capitania dos Portos, queria obter o cobiçado título.

 Desejava que seu porto de origem, onde estivessem registadas sua condição e sua capacidade, fosse o cais de Salvador, de onde partira menino para a aventura do mar. Também ele tinha suas superstições, afirmava sorrindo.

Protestava Zequinha: aquela fora uma nobre atitude, a revelar o patriotismo do comandante, vindo do Oriente para dar seus exames na Bahia- “Aliás, sem falsa modéstia, com certo brilhantismo”, esclarecia o capitão de longo curso. Assim lhe dissera entusiasmado, por ocasião das provas, o Comandante Georges Dias Nadreau, então capitão dos portos, hoje almirante ilustre da nossa gloriosa Marinha de Guerra.

Na outra moldura, o diploma de Cavaleiro da Ordem de Cristo, a importante condecoração lusitana, honraria, com direito a medalha e colar, conferida ao comandante por D. Carlos I, Rei de Portugal e Algarves, pelos seus relevantes serviços ao comércio marítimo.

Sentava-se numa cadeira de abrir e fechar, dessas de bordo com assento e recosto de oleado, ao lado da roda do leme, o cachimbo na mão, o olhar perdido além das janelas.

Numa larga mesa, o globo enorme e giratório, vários instrumentos de navegação: bússola, anemómetro, sextante, higrómetro. A grande luneta negra: enxergava-se a cidade da Baia ali pertinho.

A paralela para traçar rumos e a admirada colecção de cachimbos, pela qual sentiam-se todos apaixonados. O relógio de bordo chamava-se cronógrafo.

Nas paredes, os mapas de navegação, cartas dos oceanos, das baías e golfos, das ilhas perdidas. Sobre um móvel onde o comandante guardava copos e bebidas, numa enorme caixa de vidro, a reprodução de um paquete, “um gigante dos mares, meu inesquecível "Benedict”, o último dos muitos nos quais embarcara e navegara, seu derradeiro barco. 

Ampliadas fotos de outros navios, de diverso tamanho e diferentes nacionalidades, emolduradas, algumas coloridas. Cada um daqueles navios representava um pedaço da vida do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, recordava-lhe histórias, casos, alegrias e longas noites solitárias.

E o telescópio. Foi uma sensação quando o viram armado, sua luneta apontada para o céu. “Aumenta oitenta vezes o tamanho da Lua”, anunciava Zequinha Curvelo, numa crescente intimidade com os instrumentos, os navios enquadrados, o comandante.

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