O enterro ia devagar, a voz do comandante era pausada |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 12
O comandante sentou-se, cruzou as pernas, acendeu o cachimbo
(não o de espuma-do-mar, indecente para velório; era um cachimbo negro, de boqui lha curva), olhou em torno, alimentou a conversa:
- O rosto da falecida lembra-me, nem sei por quê, o de uma
dançarina árabe que conheci, lá se vão muitos anos, quando andava a bordo de um
cargueiro holandês. Por causa dela, meu piloto, um sueco, Johann, ia
desgraçando sua vida. . . Mas consegui salvá-lo. ..
Quem muito viveu é assim: qualquer fato, paisagem ou face
recorda-lhe algo do passado, uma história de amor, as margens de um rio, o
rosto de alguém.
Não enxergara o comandante no rosto encarqui lhado e macilento de Doninha, onde os outros viam
apenas a morte, a face trigueira e os longos cabelos azulados de Soraia, a
pecadora, a mórbida bailarina de lábios de fogo?
Aquela por quem Johann, o
piloto sueco e dramático, contraíra dívidas, vendera objectos do navio, qui sera matar-se. Num passo de dança, foi Soraia
enchendo a sala, enquanto o comandante procurava, afanosamente, recordar a
melodia exótica do alucinante bailado, para trauteá-la:
- A música não é meu forte mas guardei a melodia. ..
E como esquecê-la, senhores, se ela bulia com o sangue dos
homens, música langorosa como um vício? Viciara-se Johann, perdera a cabeça.
Música e dança, Soraia era como uma doença a penetrar no sangue, envenenando-o.
Os braços de serpente, as despidas pernas, o fulgor das pedras preciosas sobre
os seios, uma flor no ventre, quem não perderia a cabeça?
Todos eles dão razão a Johann, comovem-se com o desvelo do
comandante para com seu companheiro de tripulação, arrancando-o dos braços
voluptuosos e caros da dançarina.
Ah! esses braços, essas pernas, esses seios .
. . Cada um deles vê Soraia na sala. Ela dança e sua nudez de rosas e
esmeraldas esconde o cadáver raquítico de Doninha, espanta o medo e a morte.
No outro dia, pela manhã, no enterro, foi novamente o
comandante quem os afastou do círculo da morte, ao aparecer envergando uma
farda de cerimónia, magnífica. Ainda não o haviam visto assim, de uniforme
completo, as dragonas prateadas, as mãos calçadas de luvas brancas, segurando
um novo boné com âncora doirada. E a condecoração ao peito. Foi dizendo:
- No mar seria bem mais rápido: embrulhava-se num pano,
cobria-se com a bandeira, um marujo tocaria um dobre na cometa e o corpo mergulharia nas águas. Mais rápido e mais bonito, não
é verdade?
- O senhor assistiu a algum enterro assim, Comandante?
- Ora... Dezenas... Assisti e comandei... Dezenas.
Semicerrava os olhos, os vizinhos sentiam o desfile das recordações naquele
gesto simples.
- Estou me lembrando do pobre Giovanni. .. Um marinheiro que
esteve sob minhas ordens muitos anos. Eu mudava de navio, ele_ desengajava
também, era muito pegado comigo.
Só que era italiano e, como os senhores sabem,
os italianos são muito supersticiosos. Sempre me recomendava: “Comandante, se
eu morrer embarcado quero ser jogado em mar de minha terra.” Segundo ele, se
seu corpo fosse atirado em outras águas, sua alma não teria descanso. ..
O enterro ia devagar, a voz do comandante era pausada:
- Quando ele morreu, esse bravo Giovanni, deu-me uma
trabalheira dos diabos...
- Morreu de quê?
- De tanto beber. De que outra coisa poderia morrer
Giovanni? Bebia como um desesperado, desgostos de família. Pois bem: quando ele
morreu fui obrigado a fazer dois dias de navegação fora de rota. Fora de rota,
meus senhores, sabem lá o que é isso!
Só para jogar o corpo em águas
italianas... Eu tinha prometido, cumpri. Mudei o rumo, viajamos quarenta e oito
horas. ..
- E... e o defunto... - O quê?
- Aguentou tanto tempo sem. ..
- Metemos o corpo na câmara frigorífica do barco. Na hora da
cerimônia estava duro como um bacalhau salgado, mas estava perfeito. Só que
tive, porque cumpri com minha palavra, um mundo de complicações com os
armadores. Nem queiram saber.
Queriam saber e perguntavam. Lá ia Giovanni, sua bebedeira e
seus desgostos de família, a pele bronzeada, curtida pelo sal do mar, entre
eles e o caixão de Doninha, pelas ruas de Periperi.
Narrava o comandante a
discussão com os armadores avarentos, suas respostas firmes e bem-humoradas,
defendendo o direito de seus marujos serem atirados em mar de sua pátria, a
terem seus corpos devorados por peixes de nomes familiares.
Assim, ao
mergulharem pela última vez, seus olhos mortos poderiam enxergar, ao longe,
costas de seu país e para elas estenderiam seus parados braços.
Mas era
impossível tarefa convencer um bruto como Menendez, o armador de maus bofes, um
reles empregado da firma que, com intrigas e golpes, chegara à suprema direcção
da empresa, jogando quase na miséria o antigo chefe, um homem bom, esse sim, capaz de compreender os marinheiros
. .. Um bandido, o tal de Menendez, o comandante guardara-lhe rancor.
Como encafuar-se nos quartos escondidos nos leitos, sob
cobertores, subitamente agravados seus males, tremendo de medo, acuados pela
morte, se o comandante, naquela mesma tarde, estava na praça, a contar o
naufrágio que sofrerá nas costas do Peru, durante um maremoto?
Vagas como
montanhas, rasgando-se o mar em abismos, o céu negro como tão negra jamais a
noite conseguira ser.
Noite de Lua cheia, derramando-se o luar sobre a areia e as
águas, aquela do enterro de Doninha Barata. Noutra ocasião, eles nem veriam a
beleza do céu, estariam trancados, nos quartos e na implacável certeza da morte
próxima. Mas agora o comandante os convidava a tomar um trago em sua casa e a
espiar o céu no telescópio.
Do telescópio e de seu variado uso, com Dorothy ao luar no tombadilho.
Ah! o telescópio.. . Nele partiam para a aventura da Lua e
das estrelas, para fantásticas viagens, rompiam as fronteiras da monotonia e do
tédio. Como se por um passe de mágica deixasse Periperi de ser um pacato
subúrbio do Leste Brasileiro, habitado por velhos à espera da morte, e se
transformasse em estação interplanetária de onde descolavam audaciosos pilotos
para a conqui sta dos espaços
siderais.
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