quarta-feira, fevereiro 19, 2014

O cartão de visita andava de mão em mão
OS VELHOS

MARINHEIROS

Episódio Nº 9









Seu Adriano Meira iluminara, certa feita, com sua lanterna, a mais velha das irmãs, de vestido suspenso até o umbigo, atracada com um desconhecido, alta madrugada, na praia, “o coxame reluzindo”. Coisas desse estilo, uma quantidade. As chuvas caíam fortes, encharcando as ruas arenosas, adubando as imaginações.

Ah! um escândalo assim, com homem casado e moça solteira fugindo, com outra se perdendo na praia, com suicídio e ruína, só mesmo os habitantes de Periperi podem lhe dar seu inteiro valor. Enche os dias de chuva, quando os veranistas desertam e o subúrbio vive de recordações.

Dos meses alegres, Periperi conserva apenas um certo ar festivo de colónia de férias. Decorrente talvez do colorido das casas, pintadas de azul, de rosa, de verde, de amarelo, das grandes árvores na praça, da praia e da estação.

Ainda mais, certamente, do fato de ser a maioria da população fixa composta de gente sem que fazer, funcionários aposentados, comerciantes retirados dos negócios, ociosos todos. Vão à cidade uma vez por mês receber dinheiro, perdem o hábito da gravata, pela manhã andam mesmo de pijama ou com velha calça e desbotada camisa.

Todos se conhecem, encontram-se diariamente, as esposas conversam sobre problemas domésticos, trocam mudas de flores para os jardins, receitas de bolos e doces, os maridos jogam gamão e dama, emprestam-se jornais, alguns se dedicam à pesca de linha, todos se reúnem na estação e, sentados nos bancos, aguardam a passagem dos trens.

Reúnem-se também, no fim da tarde, na praça. Cadeiras de balanço, de braços, espreguiçadeiras, além dos bancos toscos em torno às árvores. Discutem política, recordam acontecimentos do último veraneio, prolongam a velhice longe da agitação da cidade grande cujas luzes se acendem na distância, marcando a hora do jantar.

Na paz infinita desse refúgio, o tempo é lento de passar, e, na hora cálida da sesta, tem-se a impressão de haver o tempo parado definitivamente.

Quando mais intensos eram os comentários em torno da tragédia dos Cordeiros, uma notícia surpreendente: a casa de janelas verdes fora vendida. Como pudera acontecer à revelia deles, sem que houvessem tomado conhecimento das negociações?

Jamais ali se vendera ou alugara casa sem a participação activa dos vizinhos, dando palpites, discutindo os preços, chamando a atenção do interessado para defeitos e qualidades, provocando não raras vezes a ira impotente dos corretores.

No entanto, logo a venda de casa tão em evidência, salpicada, por assim dizer, pelo sangue de Pedro Cordeiro, efectuara-se sem que eles fossem ouvidos, sem terem examinado o comprador, travado relações com ele. Um mistério.

Falava-se vagamente de um senhor de posses, retirado da actividade. Mas que atividade, que posses, que senhor era esse? Nada sabiam realmente de suas condições de fortuna, estado civil, profissão. Sentiam-se logrados.

Devia-se o mistério às chuvas, não havia outra explicação possível. Realmente, as irmãs Magalhães, três velhinhas de olhos e ouvidos atentos a todos os rumores e movimentos, cuja residência ficava próximo de casa dos Cordeiros, contaram ter sentido gente a caminhar por ali, dois sujeitos de capa e guarda-chuva, há coisa de um mês.

Mas chovia tanto que não lhes fora possível manter as janelas abertas. Ademais, Carminha, a do meio, estava gripada, tinham de cuidar da doente, não contavam com a venda da casa, tudo isso afrouxara-lhes a militante vigilância. Dois homens de capa de borracha, com guardachuvas, o corretor e o comprador, nada sabiam além disso.

A chegada da empregada, mulata escura e quarentona, num trem matinal, abriu novas perspectivas à curiosidade latente. Mal havia ela transposto a porta e já as irmãs Magalhães ofereciam os préstimos, bombardeavam-na de perguntas.

Como as chuvas haviam cessado, a frente da casa foi-se povoando de velhos. Vinham calentar sol nas imediações, aproximavam-se aos poucos, buscavam conversa. Mas essa mulata Balbina era de pouca prosa, casmurra e resmungona. 

Lavando o assoalho, respondia com monossílabos, recusava as ofertas de ajuda. Ainda assim, conseguiram saber que o novo proprietário chegaria pela tarde.

- Com a família?

- Que família?

Estabeleceram plantão na gare, haviam decretado o estado de alerta. Desta vez o novo vizinho não lhes escaparia. Voltara o sol, suave sol de inverno, os dias eram belos, doce a brisa do golfo. Faziam conjecturas: jogaria damas? Seria bom no gamão? Talvez fosse, quem sabe?

O  esperado parceiro de xadrez do Emílio Fagundes, ex-chefe da secção da Secretaria de Agricultura a disputar partidas por correspondência, pois em Periperi não havia nenhum outro conhecedor de jogo tão científico e complicado.

Assim, quando o comandante desceu do trem das duas e meia e se dirigiu ao vagão de carga para presidir ao desembarque de sua bagagem, a maioria dos homens válidos ali estava a esperá-lo, retirando os olhos dos jornais da manhã ou dos tabuleiros de damas para examinar o cidadão baixote e troncudo, de rosto avermelhado, nariz adunco, vestido com aquele extraordinário paletó.

- O que é aquilo? - perguntou Zequinha Curvelo, apontando a roda do leme, num engradado.

Nem mesmo Augusto Ramos, aposentado da Secretaria de Interior e Justiça e apaixonado campeão de damas, naquele momento preparando uma jogada definitiva com a qual comeria uma dama e três pedras de Leminhos (o dos Correios e Telégrafos), resistiu à visão da roda do leme.

Abandonou a partida, juntou-se ao grupo. A bagagem estendia-se pela plataforma, misteriosos caixões com inscrições em letras vermelhas: “FRÁGIL! INSTRUMENTOS NÁUTICOS!”, um globo enorme, uma escada de cordas, enrolada. O comandante exigia cuidado dos carregadores. Depois, foi a inesquecível escalada dos rochedos.

Naquela mesma tarde, quando o sol declinou e a sombra cobriu quase toda a praça, Zequinha Curvelo contava àqueles que haviam perdido a grande cena da chegada, como um frio lhe percorrera a espinha ao ver o comandante no alto das rocas, impávido, o rosto contra o sol, os olhos fixos no mar. Pelos bancos e cadeiras sob os tamarneiros, os aposentados e retrados dos negócios escutavam e aprovavam, Zequinha entusiasmava-se:

- Antes mesmo de entrar em casa, foi ver o mar.

O cartão de visitas andava de mão em mão. O velho José Paulo, conhecido por Marreco, retirado do negócio de medicamentos, comentou:

- Quanta coisa esse homem não tem para contar...

Site Meter