O cartão de visita andava de mão em mão |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 9
Seu Adriano Meira iluminara, certa feita, com sua lanterna, a mais velha das irmãs, de vestido suspenso até o umbigo, atracada com um desconhecido, alta madrugada, na praia, “o coxame reluzindo”. Coisas desse estilo, uma quantidade. As chuvas caíam fortes, encharcando as ruas arenosas, adubando as imaginações.
Ah! um escândalo assim, com homem casado e moça solteira
fugindo, com outra se perdendo na praia, com suicídio e ruína, só mesmo os
habitantes de Periperi podem lhe dar seu inteiro valor. Enche os dias de chuva,
quando os veranistas desertam e o subúrbio vive de recordações.
Dos meses alegres, Periperi conserva apenas um certo ar
festivo de colónia de férias. Decorrente talvez do colorido das casas, pintadas
de azul, de rosa, de verde, de amarelo, das grandes árvores na praça, da praia
e da estação.
Ainda mais, certamente, do fato de ser a maioria da população
fixa composta de gente sem que fazer, funcionários aposentados, comerciantes
retirados dos negócios, ociosos todos. Vão à cidade uma vez por mês receber
dinheiro, perdem o hábito da gravata, pela manhã andam mesmo de pijama ou com
velha calça e desbotada camisa.
Todos se conhecem, encontram-se diariamente,
as esposas conversam sobre problemas domésticos, trocam mudas de flores para os
jardins, receitas de bolos e doces, os maridos jogam gamão e dama, emprestam-se
jornais, alguns se dedicam à pesca de linha, todos se reúnem na estação e,
sentados nos bancos, aguardam a passagem dos trens.
Reúnem-se também, no fim da
tarde, na praça. Cadeiras de balanço, de braços, espreguiçadeiras, além dos
bancos toscos em torno às árvores. Discutem política, recordam acontecimentos
do último veraneio, prolongam a velhice longe da agitação da cidade grande
cujas luzes se acendem na distância, marcando a hora do jantar.
Na paz infinita
desse refúgio, o tempo é lento de passar, e, na hora cálida da sesta, tem-se a
impressão de haver o tempo parado definitivamente.
Quando mais intensos eram os comentários em torno da
tragédia dos Cordeiros, uma notícia surpreendente: a casa de janelas verdes
fora vendida. Como pudera acontecer à revelia deles, sem que houvessem tomado
conhecimento das negociações?
Jamais ali se vendera ou alugara casa sem a
participação activa dos vizinhos, dando palpites, discutindo os preços, chamando
a atenção do interessado para defeitos e qualidades, provocando não raras vezes
a ira impotente dos corretores.
No entanto, logo a venda de casa tão em
evidência, salpicada, por assim dizer, pelo sangue de Pedro Cordeiro,
efectuara-se sem que eles fossem ouvidos, sem terem examinado o comprador,
travado relações com ele. Um mistério.
Falava-se vagamente de um senhor de
posses, retirado da actividade. Mas que atividade, que posses, que senhor era
esse? Nada sabiam realmente de suas condições de fortuna, estado civil,
profissão. Sentiam-se logrados.
Devia-se o mistério às chuvas, não havia outra explicação
possível. Realmente, as irmãs Magalhães, três velhinhas de olhos e ouvidos
atentos a todos os rumores e movimentos, cuja residência ficava próximo de casa
dos Cordeiros, contaram ter sentido gente a caminhar por ali, dois sujeitos de
capa e guarda-chuva, há coisa de um mês.
Mas chovia tanto que não lhes fora
possível manter as janelas abertas. Ademais, Carminha, a do meio, estava gripada,
tinham de cuidar da doente, não contavam com a venda da casa, tudo isso afrouxara-lhes
a militante vigilância. Dois homens de capa de borracha, com guardachuvas, o
corretor e o comprador, nada sabiam além disso.
A chegada da empregada, mulata escura e quarentona, num trem
matinal, abriu novas perspectivas à curiosidade latente. Mal havia ela
transposto a porta e já as irmãs Magalhães ofereciam os préstimos,
bombardeavam-na de perguntas.
Como as chuvas haviam cessado, a frente da casa
foi-se povoando de velhos. Vinham calentar sol nas imediações, aproximavam-se
aos poucos, buscavam conversa. Mas essa mulata Balbina era de pouca prosa,
casmurra e resmungona.
Lavando o assoalho, respondia com monossílabos, recusava as
ofertas de ajuda. Ainda assim, conseguiram saber que o novo proprietário
chegaria pela tarde.
- Com a família?
- Que família?
Estabeleceram plantão na gare, haviam decretado o estado de
alerta. Desta vez o novo vizinho não lhes escaparia. Voltara o sol, suave sol
de inverno, os dias eram belos, doce a brisa do golfo. Faziam conjecturas:
jogaria damas? Seria bom no gamão? Talvez fosse, quem sabe?
O esperado
parceiro de xadrez do Emílio Fagundes, ex-chefe da secção da Secretaria de
Agricultura a disputar partidas por correspondência, pois em Periperi não havia
nenhum outro conhecedor de jogo tão científico e complicado.
Assim, quando o comandante desceu do trem das duas e meia e
se dirigiu ao vagão de carga para presidir ao desembarque de sua bagagem, a
maioria dos homens válidos ali estava a esperá-lo, retirando os olhos dos
jornais da manhã ou dos tabuleiros de damas para examinar o cidadão baixote e
troncudo, de rosto avermelhado, nariz adunco, vestido com aquele extraordinário
paletó.
- O que é aqui lo?
- perguntou Zequi nha Curvelo,
apontando a roda do leme, num engradado.
Nem mesmo Augusto Ramos, aposentado da Secretaria de
Interior e Justiça e apaixonado campeão de damas, naquele momento preparando
uma jogada definitiva com a qual comeria uma dama e três pedras de Leminhos (o
dos Correios e Telégrafos), resistiu à visão da roda do leme.
Abandonou a
partida, juntou-se ao grupo. A bagagem estendia-se pela plataforma, misteriosos
caixões com inscrições em letras vermelhas: “FRÁGIL! INSTRUMENTOS NÁUTICOS!”,
um globo enorme, uma escada de cordas, enrolada. O comandante exigia cuidado
dos carregadores. Depois, foi a inesquecível escalada dos rochedos.
Naquela mesma tarde, quando o sol declinou e a sombra cobriu
quase toda a praça, Zequi nha Curvelo
contava àqueles que haviam perdido a grande cena da chegada, como um frio lhe
percorrera a espinha ao ver o comandante no alto das rocas, impávido, o rosto
contra o sol, os olhos fixos no mar. Pelos bancos e cadeiras sob os
tamarneiros, os aposentados e retrados dos negócios escutavam e aprovavam, Zequi nha entusiasmava-se:
- Antes mesmo de entrar em casa, foi ver o mar.
O cartão de visitas andava de mão em mão. O velho José Paulo,
conhecido por Marreco, retirado do negócio de medicamentos, comentou:
- Quanta coisa esse homem não tem para contar...
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