"que a putinha da sua filha me roubou" |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 8
Homem pouco sensível às visões
estéticas, não se empolgou com o espectáculo dos corpos jovens e nus nem com a
poesia das ternuras trocadas entre o talentoso estudante e a formosa coronela.
Não se encheu de admiração, encheu-se de
raiva, atrapalhavam-no os embrulhos (havia enfiado os cordões nos dedos),
tiravam-lhe parte da dignidade necessária naquele momento. Foi o que salvou o
jovem Paiva. Sem se preocupar com as roupas, saltou do leito, abriu a janela,
alcançou a rua.
Nu como Deus o pôs ao mundo, atravessou
a praça cheia de gente, numa velocidade de campeão de corrida. Livre finalmente
dos embrulhos, o revólver na mão, o tenente-coronel da Polícia Militar apareceu
logo depois a persegui-lo com palavrões e tiros. Pela janela aberta, os
curiosos mais audazes ainda puderam ver a desnuda e consolada solidão de Ruth a
gritar inocência.
Desapareceu o estudante, escondido pela
família ou por amigos. Houve longas explicações a portas fechadas entre o
militar e a esposa, malas foram arrumadas e partiram naquela mesma noite, pelo
último trem. Iam os dois muito agarradinhos e carinhosos, segundo o testemunho
de alguns felizardos que assistiram ao embarque.
Ligar esses fatos ao comandante não
parece fácil. No entanto, o velho Leminhos, aposentado dos Correios e
Telégrafos, a única testemunha viva dos acontecimentos, todas as vezes que
recorda a história do capitão de longo curso não deixa de dizer:
- “As coisas começaram quando um major
da Briosa pegou a mulher com um estudante, na cama”.
Não se sabe por que Leminhos rebaixa o
tenente-coronel a major e estabelece uma relação entre os chifres de Ananias e
as aventuras do comandante. No entanto a afirmação é categórica. Leminhos é
homem de bom conselho, ele há - de ter suas razões, compete-nos respeitá-las.
Já o segundo escândalo entrosava-se de
forma concreta com o comandante. Certos factos passaram-se na casa onde ele
viria depois habitar e, não fora a tragédia a envolver a família Cordeiro,
certamente não teria ele oportunidade de adqui ri-la
e a preço de ocasião.
Essa família Cordeiro era composta do
pai, Pedro Cordeiro, proprietário de uma indústria de bebidas alcoólicas, da
mãe e quatro filhas casadoiras.
Já estivera Pedro Cordeiro em excelente
situação financeira, mas era gastador e imprevidente, a prova estava naquela
casa de veraneio, batida sobre sólidos alicerces de pedra, ampla e confortável,
quase tão rica quanto sua residência na cidade.
Gastara um dinheirão para construí-la,
dera festa de arromba ao inaugurá-la. Satisfazia todos os caprichos das filhas,
até lancha a motor comprara para elas.
A mãe comandava as meninas na busca de
noivos. Era um sem-fim de festinhas na casa de janelas verdes, pares dançando
na grande sala sobre o mar, onde, depois, o comandante instalaria o telescópio.
As moças partiam de lancha, demoravam-se à
noite nos rochedos, saíam para piqueniques em Paripe, não sossegavam um momento,
eram a alma do veraneio. Uma delas, a segunda, Rosalva, conseguira noivar no
ano anterior com um agrónomo, já não buscava à noite os caminhos da praia,
agarradinha com o noivo na varanda, de mãos dadas. De mãos, boca e coxas, como
esclarecia seu Adriano Meira, o da lanterna.
No carnaval, houve dança de sábado a
terça-feira na residência de Pedro Cordeiro. E, alguns dias depois, o
escândalo: Adélia, a mais jovem das quatro, morena e inconformada, sumira
levando sua roupa e as melhores das irmãs, e de contrapeso, o Dr. Aristides
Melo, médico e casado.
Praticamente toda a população assistiu ao espectáculo
dado pela esposa abandonada, a invadir em prantos o lar desfeito dos Cordeiros,
a reclamar aos berros o marido que a “putinha de sua filha me roubou”.
Fugiram
os Cordeiros de Periperi, e ainda se comentava o acontecido quando retumbou o
tiro com que Pedro Cordeiro, no escritório da fábrica na Bahia, se suicidara ao
ser decretada sua falência.
Os ecos do tiro chegavam de trem ao subúrbio,
acompanhados de uma onda de boatos: todos os bens do suicida estavam
hipotecados, credores indóceis cercavam o cadáver, o agrónomo rompera o
noivado, montado em severas razões: família desmoralizada, noiva sem dote.
Outra filha, a mais velha, amigara-se também com homem casado, uma espécie de
maldição ou de moda na família. Não se conversava outro assunto e as senhoras
sussurravam detalhes escabrosos dos namoros das meninas Cordeiro.
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