É o que eu sempre digo. Nem falar, nem comandar. |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 26
Não, não podia ser um mentiroso, nem sequer percebia a ironia e a dúvida da piada nem o tom de voz trocista. Se fosse um charlatão, como queria Chico Pacheco, zangar-se-ia, responderia irritado. Adriano Meira arrependia-se:
- O senhor tem razão, Comandante. A gente não deve falar do que não
conhece...
- É o que eu sempre digo. Nem falar nem comandar...
Porque não conhecia o El Gamil, cargueiro egípcio, quando aceitara
comandá-lo naquela lenta e monótona travessia entre Suez e Aden, transportando
cimento.
Loucura da qual só se dera conta quando já era tarde: o barco estava em
péssimas condições, nem o aparelho de telefonia funcionava. E a tripulação era
constituída de tipos suspeitos, assustadoras carantonhas. Felizmente ia com ele
o fiel Giovanni, aquele marinheiro por cuja causa se desentenderia, anos
depois, com armadores europeus.
E quando o El Gamil naufragou, com um rombo no casco, só ele e Giovanni
conseguiram salvar-se, recolhidos por um navio norueguês, após aquela
mortandade de homens e tubarões.
Guardava ainda a faca
providencial, mostrar-lhes-ia uma noite dessas quando fossem tomar um trago em
sua casa.
Não ia além dessas passageiras dúvidas, fugidias desconfianças
momentâneas, o resultado da desenfreada campanha de Chico Pacheco. Adriano
Meira, ao vê-lo, reclamava:
- Lá vem você com essa conversa... O homem é um mentiroso, é só o que
você sabe dizer. Fui acreditar, estrepei-me. O comandante me exibiu até a faca
com que matou os tubarões...
- Vocês são uns imbecis!
Incompatibilizava-se com uns e outros, cada vez mais amargo e cáustico,
boca suja de palavrões, envolvendo em seu desprezo e em sua raiva toda a
população de Periperi, os aposentados e suas esposas, todas elas ouvintes
fanáticas das aventuras do comandante.
A escolha de Vasco para padrinho da festa de São João, em detrimento de
sua candidatura, foi demais. Ainda tentou pressionar o padre, recordando-lhe
presentes anteriores e abrindo-lhe perspectivas para doações substanciais
quando ganhasse sua questão contra o Estado.
Depois deblaterou contra o
reverendo, transformando-o num dissoluto e num oportunista, o que era evidente
exagero, pois o Padre Justo apenas tentava manter a paz de seu rebanho e mesmo
as línguas mais ferinas não sabiam de saias em sua vida, além da moça a cuidar
do presbitério, aliás de suave e modesta beleza, parecendo imagem de santa.
Não podia Chico Pacheco, antes o mais adulado dos moradores de
Periperi, quase tão respeitado quanto o velho Marreco, presença sempre saudada
com entusiasmo, aguentar tanta humilhação, tanta deslealdade.
Não suportaria ver o charlatão, com sua cara alvar, de dono de
armarinho, ao lado do padre ingrato (devia pelo menos devolver-lhe o capão e o
vinho de jurubeba, se possuísse o menor resquício de dignidade), presidindo as
festas de São João.
Resolveu partir. Mas como não desejasse tampouco dar uma alegria ao
inimigo, inventou estar seu processo em pauta, em vésperas de julgamento. Nem
com essa notícia, antes sensacional, conseguiu sacudir a indiferença a cercá-lo
agora, tudo por obra e graça de um reles embusteiro vestido com um ridículo
paletó de embarcadiço.
Partiu sob uma chuva diluvial, a estação estava vazia. Parecia um
fugitivo, escondido em sua raiva impotente.
Onde Dondoca põe chifres morais no
narrador
Confesso que a malévola campanha, filha da inveja e do despeito,
desencadeada por Chico Pacheco contra o comandante, abalou um pouco a minha
antes incondicional admiração pela figura ímpar do herói.
Algumas de suas aventuras,
examinadas à luz da crítica arrasante do ex-fiscal do consumo, parecem-me ser
tanto quanto exageradas. Não o digo para influir num prévio julgamento, coloco-me
aqui como um historiador imparcial
e, se falo no assunto, é porque me causou certa mossa o fato dos aposentados e
retirados dos negócios terem dado tão pouca importância aos comentários e
observações de Chico Pacheco, de se terem mantido tão solidários com o
comandante.
Num trabalho de pesqui sa
como este a que me atirei (para matar o tempo e também para ver se com ele
posso participar de um concurso literário-histórico do Arqui vo
Público), tentando restabelecer a verdade, certos detalhes necessitam ser
levados, se não a debate público, pelo menos ao exame das personalidades
gradas, capazes de sobre eles emitirem douta opinião.
Eis por que consultei sobre o assunto o Meritíssimo Dr. Alberto
Siqueira, cuja importância representa no Periperi de hoje aqui lo que no passado significou a presença do
Comandante Vasco Moscoso de Aragão.
O juiz é homem de saber
universal, nenhum ramo do conhecimento humano escapa à sua curiosidade, do
Direito à Filosofia, da Economia às discutidas questões sexuais.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home