segunda-feira, março 10, 2014

E o que sabe o amigo de tubarões?
OS VELHOS

 MARINHEIROS

Episódio Nº 25










Chico Pacheco também. Ainda há quatro anos presidira, com brilho e imponência, os festejos de São João. Por que então, naquele ano da chegada do comandante, resolvera reivindicar para si, novamente, o posto cobiçado?

Se alguém a ele tinha direito era Zequinha Curvelo, morando ali há cinco anos e até então esquecido pelo padre. No entanto, foi o próprio Zequinha quem, antes dos demais, lembrou ao reverendo o nome de Vasco Moscoso de Aragão.

 Na sua opinião não podia ser outro o padrinho daquele São João, era da mais estrita justiça escolherem o marinheiro ilustre que realçava a fama de Periperi com sua presença entre eles.

 Padre Justo concordou, sempre atraído pelos novos habitantes, gostava de conquistar-lhes a confiança e a amizade. Parecia uma escolha pacífica: os importantes, como o velho Marreco, Adriano Meira e Emílio Fagundes, estavam todos de acordo.

 Sem falar na gente pobre: esses adoravam o comandante, sempre pronto a socorrer um e outro, a soltar um dinheirinho, a pagar um trago de cachaça, Era, como ele explicava, um costume que lhe vinha do trato com os” marinheiros, seus problemas, suas carraspanas: gostava de ajudar os demais, de aconselhá-los, de ouvi-los contar suas confidências.

Daquela vez o Padre Justo esperava não ferir susceptibilidades, não provocar ciúmes com a escolha, tão geralmente aplaudido lhe parecia o nome do comandante.

Enganava-se. Quando a notícia foi conhecida em Periperi, Chico Pacheco encolerizou-se. Fizera saber ao padre, há mais de um mês, ser candidato, mandara-lhe um capão de presente e uma garrafa de vinho de jurubeba, marca Leão do Norte, um néctar.

 E, de repente, era apunhalado pelas costas, miseravelmente traído. Como se não lhe bastassem os adiamentos de seu processo e as decepções sofridas em Periperi, sabotava-lhe a Igreja a candidatura e aliava-se ao impostor, ao charlatão.

Tomou-se Chico Pacheco de súbito e violento anticlericalismo, encheu-se de simpatia pela Maçonaria, disse cobras e lagartos do clero em geral e do Padre Justo em particular, atribuiu-lhe amantes e filhos.

Se ainda fosse outro o escolhido, poderia aceitar a humilhação em silêncio. Mesmo Zequinha Curvelo seria suportável, apesar de Chico se haver candidatado exactamente para evitar que o “ordenança” de Vasco obtivesse afinal a demorada honraria.

 Quisera impedir a vitória do adulador e o resultado era uma derrota medonha, a pior que já sofrera. Sim, andava tão apaixonado depois daquela história do poker que parecia esquecido do processo a correr no fórum da Bahia, como se não tivesse no mundo outro inimigo a combater além do Comandante Vasco Moscoso de Aragão.

Nos últimos tempos, a partir da tarde do iceberg e dos baralhos novos, abandonara o terreno das insinuações para o das acusações frontais. Ia de um em um, analisando as histórias de Vasco, pondo em relevo supostas contradições, chamando a atenção para detalhes a seu ver absurdos.

Não se pode dizer que obtivesse êxito em sua tentativa de desmoralizar e destruir o concorrente. Mas, sem dúvida, sua persistência acabava por insinuar certa dúvida nos espíritos, uma vaga desconfiança: seria mesmo tão heróico o comandante, tão aventurosa sua carreira, tão plena de perigos e amores?

 Podia tanta coisa assim emocionante acontecer a um único homem, ser tão rica uma vida quando tão medíocre e pobre fora a de todos eles?

Adriano Meira, velho gozador e irreverente, chegara a arriscar uma piada de mau gosto, certa ocasião, quando o comandante narrava uma das suas mais sensacionais proezas, aquela história dos dezanove marinheiros devorados por tubarões no Mar Vermelho.

 Ele, Vasco, escapara graças à bondade divina e à sua destreza no manejo da faca com que abrira a barriga de três tubarões esfomeados, nada menos de três.

- Faça isso por menos, Comandante. É tubarão demais... Olhou-o Vasco com seus olhos límpidos, de criança:

- Como disse, meu amigo?

Embaraçou-se Adriano, tão tranquila a voz, tão límpido o olhar do Comandante.

Mas como chegara de uma conversa com Chico Pacheco, fez um esforço e repetiu a graçola:

- Tubarões demais, Comandante . . .

- E que sabe o amigo sobre tubarões? - Já navegou no Mar Vermelho? Sua observação não tem cabimento, posso lhe afirmar. Não há lugar no mundo com tantos tubarões... 

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