Não ia casar com um qualquer, ela, neta de barão... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 42
Numa valsa fatal, a desilusão. Saíra dançando com Madalena e, conversa vai, conversa vem, falaram de noivado e casamento a propósito de outra moça.
Madalena revelou-lhe sua única exigência
a quem qui sesse levar-lhe a caixa de
ossos ao altar: um título ou uma patente. Não exigia títulos nobiliárqui cos, se bem, evidentemente, um conde ou um
marquês ou um barão seria o ideal, agora difícil com a República, a traição
miserável feita ao pobre Imperador, amigo de seu avô com quem até se
correspondia.
Referia-se a títulos republicanos,
universitários, carta de doutor, patente de oficial do Exército ou da Marinha.
Não ia casar com um qualquer, ela, neta de barão, filha de desembargador, para
ser a esposa humilhada de um “seu” Fulano de Tal, de um “seu” Beltrano, de um
“seu” Sicrano.
Queria ser a Senhora Doutor ou Capitão
ou Comandante, não lhe importava tanto o dinheiro e, sim, a família, o nome.
Disso fazia questão.
Vasco perdeu o pé, errou o passo,
empalideceu e murchou. Puxara a conversa para aquele assunto na intenção de
insinuar-se e a enfatuada magricela atirara-lhe logo em rosto sua condição de
“um qualquer”, um daqueles “seu” fulano de quem ela falava numa voz de sumo
desprezo.
Não chegara sequer a situar-se
candidato, encabulou, entupiu, arrastou-se silencioso até os últimos acordes.
Cresceu sua tristeza.
Porque sua tristeza tinha como causa
única e exclusiva o fato de não possuir um título a preceder-lhe o nome. Por
que não singrava de vez à conqui sta
de Dorothy, ligada a Roberto apenas pelo dinheiro que ele lhe dava?
Muito mais dinheiro podia Vasco garantir-lhe,
outro conforto, casa própria, além de uma vida contente, com festas, passeios,
noitadas, champanhe. Sem falar no horror de ter de suportar um suíno como
Roberto a fuçar-lhe o cangote, a apertá-la contra si, a espojar-se na cama.
E por Dorothy suspirava Vasco, por ela
pulsava aflito seu coração e à noite imaginava-a nua, os seios túmidos, as
rígidas coxas, a redonda bunda, o ventre de veludo. Por que não a arrancava
então dos braços de Roberto? Medo? Sim, medo de Roberto.
Não medo físico, mas temia suas banhas,
e homem que bate em mulher é sempre covarde, incapaz de enfrentar outro homem.
E quem se atreveria a enfrentar Vasco Moscoso de Aragão, amigo do doutor Jerónimo,
mandando na polícia, com soldados e marinheiros às suas ordens, se o qui sesse? Era só dar uma palavra ao coronel e ao
comandante.
Era outra forma de medo, nascida do
respeito do comerciante pelo doutor, com curso de Faculdade, canudo de médico,
anel de grau, defesa de tese.
Jamais pudera Vasco vencer a distância a
separá-lo dos doutores. Ficava humilde ante eles, não era seu igual.
Essa a procurada causa daquela expressão
melancólica, da permanente mágoa a roer-lhe a alegria e a inqui etar seus amigos. Para Vasco, os homens com um
título ou uma patente formavam casta à parte, situavam-se acima dos outros
mortais, eram seres superiores.
Vasco sentia sua inferioridade a cada
momento. Quando entrava na Pensão Monte Cario e Carol saudava-o com ternura:
“seu Aragãozinho”, após ter dito coronel, doutor, comandante, tenente aos
outros quatro.
Quando uma nova mulher era descoberta e
incorporada à roda, na mesa de um cabaré ou na sala clandestina de um castelo,
e, ao informar-se da condição dos demais, perguntava por seu título ou
propunha-se a adivinhá-lo:
- Deixe que eu adivinho. O senhor é
major, sou capaz de jurar.
Quando no palanque governamental, eram
apresentados pelo chefe do Estado a uma personalidade e após as sílabas sonoras
dos títulos proclamados, chegava sua vez:
- Seu Vasco Moscoso de Aragão, grande
comerciante da praça.
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