Seu Vasco era o chefe da firma... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 36
O primeiro empregado, aquele
espanhol Rafael Menendez, entrou como sócio forte e, em suas mãos, por
disposição testamentária do velho Moscoso, ficou a completa direcção dos
negócios e o futuro da casa. Vasco herdou as quotas do avô que lhe garantiam o
controle da firma, a maior parte dos lucros, uma fortuna considerável, e
nenhuma responsabilidade.
Viu-se assim livre de encargos, horários e obrigações e cheio de
dinheiro. Deixou a Menendez todas as decisões, por uma vez apenas dele
discordou e impôs sua vontade: quando o espanhol decidiu despedir o velho
Giovanni, um carregador que entrara para a firma quase na fundação.
Durante mais de quarenta anos transportara na
cabeça fardos e fardos, do depósito para as carroças, infatigável, sem um dia
de descanso, sem uma queixa, servindo à noite como vigia do prédio, dormindo em
cima dos fardos no depósito, abrindo a porta para fregueses retardatários,
aqueles que ousavam infringir os horários do velho Moscoso.
Vasco era-lhe grato, pois o negro
Giovanni o protegera sempre, desde os dias iniciais e sofridos de sua vinda
para o prédio, com dez anos de idade. Contava-lhe histórias à noite, fora
embarcadiço na juventude, falava-lhe de mares e portos.
Nascido João e escravo, fugira para a
liberdade do mar, onde a tripulação italiana de um navio o transformou para
sempre em Giovanni. Era
o único a demonstrar simpatia pela criança prisioneira no sobradão escuro onde
o cheiro das especiarias tonteava.
Envelhecera na firma, chegara aos
setenta anos e as forças começavam a faltar-lhe, já não dava completa conta do
serviço. Menendez resolveu despedi-lo e tomar outro carregador.
Vasco, mesmo após a morte do avô
e sua nova situação de chefe, guardara certo temor ante Menendez. O espanhol
era um desses homens blandiciosos, a bajular os seus superiores, arrogante e
estúpido com os que dele dependiam ou lhe eram inferiores em cargo e
importância.
Assumira a direcção da firma com
mão de ferro, os negócios marchavam admiravelmente. Mas os empregados
queixavam-se, era pior ainda do que no tempo do velho Moscoso.
Vasco temia o olhar frio e crítico do
espanhol, seu jeito de falar, sem gritos, sem exaltação, mas com inflexível
decisão. Quando menino e rapaz, no escritório, Menendez não o repreendia como
aos demais.
Levava, porém, Vasco o sabia, ao conhecimento
do avô cada erro seu, cada violação do regulamento da casa. Inclusive suas
raras escapadas nocturnas, já homem de bigodes, protegidas pelo negro Giovanni.
Agora Menendez curvava-se ante ele,
demonstrando-lhe uma consideração e um respeito reservados antes para o velho
Moscoso. No entanto, tentou impor sua decisão qquando Vasco, aflito e indignado,
veio discutir o caso do negro despedido.
Giovanni fora procurá-lo na véspera à noite
para contar-lhe o sucedido. Menendez lhe pagara o salário mísero e, sem uma
explicação sequer, dispensara seus serviços.
Completara Giovanni os setenta
anos, suas pernas já não tinham a segurança de antes, seus braços perdiam o
vigor hercúleo. Encontrara Vasco num bar com os amigos, explicou-lhe a
situação, os olhos gastos piscando para não chorar, a voz trémula:
- A casa me comeu as carnes,
agora quer jogar os ossos fora . . .
- Isso não vai acontecer... - garantiu
Vasco. O negro velho lhe agradeceu com um conselho:
- Aquele gringo não presta, seu
Aragãozinho. Tome tento com ele senão ele ainda lhe faz uma falseta.
No outro dia Vasco amanheceu no
escritório, fato raro. Chamou Menendez para uma conversa, estava sério e
formalizado, os empregados começaram a cochichar. No gabinete do velho Moscoso,
reservado agora para Vasco, ouvia-se a voz alterada do chefe da firma.
A voz de Menendez ninguém a
escutava, jamais um grito ou uma palavra mais alta saíra de seus duros lábios
nem mesmo quando insultava nos termos mais agressivos um funcionário faltoso.
Não foi fácil impor sua vontade.
Alteava a voz, dizia ser uma desumanidade a despedida do velho Giovanni, não
havia direito a transformar em mendigo, no fim da vida, um homem cuja
existência inteira fora dedicada ao trabalho, à prosperidade da casa.
Menendez sorria seu sorriso frio,
balançava a cabeça concordando, mas mantinha-se em suas posições de princípio:
quando um empregado já não dá conta do seu trabalho só resta despedi-lo e botar
outro. Essa era a regra do jogo: ele a aplicava.
Se abrisse excepção para Giovanni, se
continuasse a pagar-lhe o ordenado, outros empregados iriam exigir tratamento
idêntico, “seu” Vasco (agora Menendez antepunha ao nome do novo chefe a
partícula respeitosa, depois de tê-lo tratado durante mais de vinte anos por
Aragãozinho) podia imaginar o desastre de tal política? Não, não podia agir de
outra maneira.
Vasco não queria saber de
princípios, de política a aplicar, apenas achava uma crueldade, uma verdadeira
miséria, a despedida de Giovanni. Menendez lavava as mãos: seu Vasco era o
chefe da firma, o que ele decidisse seria cumprido.
Ele devia, porém, pensar duas vezes antes de
pôr abaixo uma regra a reger toda a vida comercial: era a própria estrutura da
firma que ele ia colocar em
perigo. Sem contar não ser apenas de Vasco o prejuízo
acarretado, os outros sócios também seriam prejudicados. Não falava por ele,
Menendez, sua posição era de defesa de um princípio estabelecido e não de uns
magros mil-réis.
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