sábado, março 15, 2014

Um charlatão. Não pisou num navio, nunca...
OS VELHOS

 MARINHEIROS

Episódio Nº 30










Caras surgiam a medo nas janelas, rostos ainda cheios de sono. Crianças corriam para a praça onde se juntavam pescadores e operários da Leste. Para eles discursou o comandante pela primeira vez naquele dia memorável.

 Aos poucos, de pijama, foram chegando o velho José Paulo, Adriano, Emílio Fagundes, Rui Pessoa, os demais. Zequinha Curvelo, em posição de sentido ao lado do mastro, ostentava um pedaço de fita auriverde na lapela.

Houve, às dez horas, o costumeiro acto no Grupo Escolar, muito ampliado porém, com declamação da Ode ao 2 de Julho, de Castro Alves, e novo discurso do comandante, oração substanciosa, tropos magníficos.

Com Labatut, Maria Quitéria, o Periquitão, veio Vasco Moscoso de Aragão dos campos de Cabrito e Pirajá, das batalhas de Itaparica e Cachoeira, até entrar na cidade de Salvador pelo caminho da Lapinha e Soledade, curvando-se emocionado ante o cadáver de Joana Angélica tombada na porta do convento das arrependidas, na Lapa, expulsando de vez e para sempre os portugueses colonizadores.

Transfigurava-se o comandante, explodindo de indignação contra os lusos opressores, exaltando a memória dos bravos baianos libertadores da Pátria. Porque foi no 2 de Julho que a independência se concretizou efectivamente, o sangue dos baianos dando realidade ao grito do Ipiranga.

Após os hinos, comandou os dois ganhadores, os professores e os alunos, Zequinha Curvelo e os habitantes, num desfile pela rua principal até a praça, sua voz marcial ordenando “ordinário, marche!”, “direita, volver!”, “atenção, sentido!”.

Os botões da farda brilhavam ao sol, a poeira prateada de um chuvisco ralo acompanhava a passeata.
Na praça formaram os meninos, mestres e mestras, Zequinha, os carregadores (Caco Podre já um tanto vacilante das pernas, começara a beber antes da alvorada), e todos juraram bandeira.

 No fim da tarde, ainda pronunciou o comandante umas palavras ante a população reunida para assistir ao arriar dos pavilhões. Essa cerimónia final foi um tanto prejudicada por facto lastimável: encontrava-se Caco Podre em estado quase de coma, num porre daqueles, incapaz de uma nota ao clarim. Substituído por um escolar e sua corneta, não foi a mesma coisa.

 Não chegou a empanar-se, porém, o brilho da festa: as bombas, os rojões de foguetes, os morteiros compensaram. Misael mantivera-se relativamente sóbrio.

- Sim, senhor ... - comentava depois o velho Marreco ... - foi preciso que o comandante viesse morar aqui para termos uma festa de 2 de Julho à altura. É um porreta!

Estava o comandante com sua reputação cimentada; erguia-se, por assim dizer, como estátua num alto pedestal, na estima e na admiração de seus vizinhos de Periperi, definitivo e carismático.

Jamais ninguém fora ali tão considerado, tão unanimemente cortejado e respeitado. A notícia daquele 2 de Julho levou fama de seu nome aos extremos limites dos subúrbios da Leste Brasileira Não se movia uma palha naquelas redondezas sem o aviso sábio do comandante.

E, de repente, logo após aquele brilho do 2 de Julho, num luminoso dia propício às alegrias tranquilas, desabou a tempestade. Chico Pacheco desembarcou aos gritos na estação, eufórico e urgente.

- Ganhou a questão ... - pensou Rui Pessoa ao vê-lo descer. Pôs o pé na plataforma e foi logo alardeando para Rui, para o chefe da estação, os empregados, os operários a engraxarem os trilhos, para Caco Podre e Misael:

- Eu não dizia? Não avisei? Avisei a vosmicês todos! A mim, nunca me enganou...

Um charlatão. Nunca pisou num navio, nunca!

Foi de casa em casa, procurou a todos, um por um, até Zequinha Curvelo recebeu sua visita, generoso porque superior e triunfante. Levava no bolso uma caderneta negra onde tomara anotações de quando em vez a abria e consultava. Repetia sua história grotesca, entre gargalhadas e palavrões contra o comandante:

- Charlatão mais filho da puta. . .


Houve aqueles que lhe deram inteiro crédito e começaram a olhar o comandante com desprezo, rindo à sua passagem; outros acharam haver exagero de lado a lado, nem tão heróico Vasco, nem tão verdadeira a história de Chico Pacheco, esses eram poucos; terceiros não acreditaram em uma só palavra do relato do ex-fiscal do consumo, continuaram incondicionais ao lado do discutido capitão de longo curso.

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