Voltando, porém, aos assuntos do comandante... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 27
Mesmo de Medicina entende um pouco, para não dizer bastante, e é ele
quem cuida, com acerto e devotamento, das gripes brabas e frequentes de
Dondoca. Já tive ocasião de vê-lo (pois ultimamente, em mais uma prova de
confiança e estima, abriu-me ele, em plena tarde, a porta dessa sua casa
militar onde eu só penetrava à noite e furtivamente), as mangas da camisa
arregaçadas, a banhar em água quente, depositada numa bacia, os mimosos pés de
Dondoca, envolvendo-os depois numa toalha.
Segundo o Meritíssimo, não
existe melhor tratamento para resfriados e gripes. Bom tratamento para a doente
e para o improvisado médico, parece-me, pois, com o pretexto de banhar os pés
da moça, as mãos salientes do juiz sobem por vezes aos joelhos e adjacências,
fazendo Dondoca rolar na cama, rindo de gozo e de safada, penicando-me um olho
cúmplice.
Ele murmura-lhe ao ouvido
palavras doces, frases ternas: “minha bichinha, coitadinha, está doentinha”.
Tocante espectáculo o desse homem ilustre, glória da jurisprudência
baiana, acocorado ante uma bacia de flandres, a lavar, a esfregar, a beijar os
pés de humilde mulata, de poucas luzes e nenhum cabedal. Renovada prova de seus
bons sentimentos que aqui proclamo,
aproveitando-me da ocasião.
Disse-me, quando sobre minha dúvida o consultei, não constituir
surpresa para ele a fácil credulidade dos ouvintes do comandante, pois estavam
ante provas concretas de suas afirmativas: o diploma enquadrado, a Ordem de
Cristo, importantíssima! a bússola, o telescópio.
Como duvidar, como dar fé e valia às maledicências de Chico Pacheco,
apenas um ascendente daquelas más-línguas ainda hoje a infestar nosso pacato
subúrbio, a maldizer dos outros, assacando misérias contra a honra alheia.
Anda ultimamente o nosso erudito magistrado bastante melindrado por lhe
haverem chegado aos ouvidos notícias de uma discussão aqui
travada a propósito de sua carreira.
Não sei quem lhe levou os ecos do debate e não quero arriscar nomes, pois
os disse-que-disse, os mexericos e mexeriqueiros pululam em nossa minúscula
comunidade.
De qualquer maneira, devo louvar o indiscreto e sua indiscrição, pois
do relato saiu acrescido meu crédito junto ao Meritíssimo. Ao fato devo
inclusive o convite para acompanhá-lo à casa de Dondoca, uma confortadora prova
de amizade, mesmo de intimidade.
Bem sabemos que facilmente leva um homem casado um conhecido qualquer a
seu lar e à presença de sua esposa; difícil é levá-lo à casa e à presença da
amante. Só os íntimos, os fraternais, merecem tal prova de confiança.
Isso por tê-lo defendido quando Otoniel Mendonça, um puxasaco de
Telêmaco Dórea, alardeou aos berros ter-se o Dr. Siqueira aposentado como juiz
da capital após haver sido seu nome por três vezes vetado nas listas tríplices
para desembargador.
Tendo declarado o chefe do governo, quando da última vaga, que, se
obrigado a escolher entre um rato de esgoto e o Meritíssimo, nomearia o rato -
roubava e fedia menos, imaginem!
Indignado, defendi veemente a honra insultada do mestre. Eu tinha
velhas contas a ajustar com esse Otoniel Mendonça e estava à espera de
oportunidade.
Sujeitinho ainda relativamente
jovem, fizera-me uma falseta quando arrastávamos os dois a asa a uma cortesã em
férias, caída não sei por que cargas-d’agua em Periperi.
A lembrança da maqui lada Manon encheu-me de indignação e eloquência,
despejei meu despeito, alguns adjectivos duros em cima do cretino, e obtive a
aprovação da assistência. O próprio Otoniel, assustado ao ver-me tão caloroso,
recuou de suas afirmativas, declarou-se admirador do juiz, estava apenas
contando histórias que circulavam na Bahia. Além de caluniador, covarde, como
vêem.
Voltando, porém, aos assuntos do comandante, objecto real e único
dessas minhas considerações, expus o problema a Telêmaco Dórea, o poeta
modernista. Haviam melhorado nossas relações, tensas nos últimos tempos.
Viera ele procurar-me, muito
cheio de dedos e gentilezas, para cumprimentar-me por um soneto de minha
autoria - alexandrinos bem medidos, graças a Deus! - publicado num jornalzinho
simpático, de propriedade de um amigo meu, rapaz inteligente e esforçado.
Há quem o tache de achacador, acusando-o de arrancar dinheiro da operosa colónia espanhola, verrinas tremendas contra os comerciantes que se recusam a anunciar em seu periódico.
Creio não passar tudo isso de
intrigas e balelas, prefiro não tomar conhecimento. Telêmaco gostara realmente
do soneto, não economizou elogios. Comparou-me a Pethion de Vilar e Artur de
Sales, tocou-me com aquele espontâneo reconhecimento de minha veia poética.
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