quarta-feira, abril 02, 2014

A África que eu conheci.

África -


- O Continente do


 Meu Fascínio





Não nasci em África, não cresci lá nem lá me fiz homem mas, no entanto, mantenho um fascínio por este continente. A minha relação com ele acontece em três momentos perfeitamente distintos da minha vida:
 -Uma visita de estudo a Angola em Agosto/Setembro de 1960;
 - Uma comissão militar em Angola de Dezembro de 1962 a Março de 1965;
 - E, finalmente, de Setembro de 1972 a Julho de 1975 em Moçambique, na qualidade de funcionário público exercendo funções na cidade da Beira como Delegado da Inspecção de Crédito e Seguros, ao todo, pouco mais que cinco anos, concretamente cinco anos e três meses.

Refiro com pormenor este espaço do tempo porque a medida do tempo, como já se aperceberam, é muito enganadora. Anos e anos em que nada acontece, tudo igual, rotina pura, com grande dificuldade em referenciar o que quer que seja, e depois, períodos intensos em que parece que tudo se combina para acontecer, no turbilhão de uma roda do carrossel que nos deixa tontos.

África, acontece na minha vida nesses períodos efervescentes em que os sentidos se excitam pela novidade permanente do dia a dia, emprestando mais cor às paisagens e intensidade aos factos que ganham importância especial, porque aconteceram naquele momento e naquelas circunstâncias.

Tivesse eu nascido e sido criado naquele continente, e o que registaria seria o resultado de um processo de habituação em que tudo me seria familiar. Mas eu não tinha nada nem ninguém que me ligasse a África e, por isso, o meu deslumbramento, choque, surpresa no contacto com uma natureza que nuns sítios é vigorosa, asfixiante mas ao mesmo tempo cúmplice e protectora e noutros, extensa, infindável, mística, e entre uma e outra todas as combinações são possíveis desde um pôr-do-sol paradisíaco na ilha de Stª Carolina, no arquipélago do Bazaruto, próximo da costa de Moçambique, até à grandiosidade esmagadora dos penhascos da Tundavala, no planalto Central de Angola.
E depois, temos as circunstâncias. Milhares de jovens como eu foram “despejados,” de um dia para o outro, nas luxuriantes matas do norte de Angola que, de dia nos enchiam os olhos do verde da vegetação e à noite os ouvidos com as sinfonias de todos os insectos, batráquios e não sei que mais bicharada.
Era como se a natureza nos interpelasse através das vozes de cada um daqueles seus representantes: vocês não são daqui, pois não? - Quem são, o que estão aqui a fazer?

Meses mais tarde, feitas as respectivas apresentações, esclarecidos os objectivos e garantido que o problema era de homens contra homens e que não éramos portadores de serras ou mota-serras que destruíssem a floresta, a casa de toda essa bicharada, fomos acolhidos em igualdade de condições tendo apenas em nosso desfavor a ignorância que não nos permitia defender tão bem do feijão-macaco como aqueles que, conhecendo-o de ginjeira, conseguiam passar-lhe ao lado sem lhe tocarem.

Mas, quanto ao resto, lá estava ela, a floresta, feita mãe protectora, sempre disponível, abrigando-nos, escondendo-nos dos olhares indiscretos porque debaixo do seu manto protector ninguém encontra ninguém a não ser por casualidade ou nos caminhos de “pé-posto”, as “auto-estradas” da floresta.

Mas nos primeiros dias foi assustador porque naquele cenário verde, a imaginação compunha milhões de olhos fixos em nós enquanto, aos solavancos, em cima dos Unimogues, progredíamos nas picadas à estonteante velocidade de 10 km/H, perguntando, cada um a si próprio, qual seria o primeiro a cair trespassado por um daqueles olhares.

Oh, meu Alferes, eu tive tanto medo que nem a cabeça de um alfinete me cabia no cu! E assim ficou, até ao fim da comissão: ... “O Cu de Alfinete”.
Foram dias pouco gloriosos mas  profundamente humanos tanto quanto o podia ser o medo que sentíamos.
Depois, mais tarde, saídos da zona de guerra, lá na fronteira com a Zâmbia, nas margens do Zambeze, com as suas praias de areias cantantes, convivendo em paz com as populações, os simpáticos Luenas, que durante quinze meses nos acolheram com toda a naturalidade, convidando-nos para os seus batuques de fim-de-semana como nós, de certo, também os teríamos convidado, para os bailes nas nossas aldeias.


É impressionante como as pessoas simples do povo, em qualquer parte do mundo, são tão parecidas no essencial, ficando as diferenças apenas para o que é circunstancial:
- O acordeonista afina o acordeão ou a guitarra, nota por nota, enquanto o tocador do tambor, que não conhece notas, fá-lo com o calor de um molho de capim a arder aquecendo a pele do tambor até encontrar o som que melhor corresponde ao ritmo que mais aquece o sangue e apela à sensualidade.
Nos bailes das nossas aldeias predominava o ambiente dos desejos contidos, no batuque a liberdade dos desejos.
Entre os Luenas o amor livre não é pecado porque não pode ser pecado o que é da natureza. Nos bailes, a natureza é a mesma, o sangue fervilha da mesma forma, com a mesma intensidade mas o sexo, fora do sagrado sacramento do casamento, era proibido.
Por isso os frequentadores dos bailes são “civilizados” e os dos batuques “selvagens”;


- Para uns, o entendimento é que a natureza não pode ser deixada entregue a si própria porque ser-se civilizado é obedecer a um estrito código de comportamentos ditados por morais religiosas em que imperam as proibições que testam as nossas almas, que orientam as nossas vidas e que, finalmente, nos devem conduzir ao descanso eterno...

-Para os outros, a natureza é o que é, e viver que não seja em comunhão com ela, contrariando-a, não faz sentido.

As verdadeiras proibições têm a ver com tudo aquilo que pode pôr em risco as vidas como, por exemplo, aproximarem-se das margens de um rio sem acautelarem a presença de um furtivo crocodilo. Não que o crocodilo seja mau, apenas que é da sua natureza comer pessoas descuidadas que não respeitam os seus locais de vida.

A natureza é sábia e foi ela que “produziu” o homem depois de muitas tentativas condenadas ao fracasso.

Quantas “promessas” de homem não ficaram pelo caminho? Finalmente, lá conseguimos emergir da noite dos tempos depois de milhões de anos, sem mais do que uma simples ferramenta de pedra usada até à exaustão em locais próximos àquele onde me encontrava.


Tão frágeis e indefesos que éramos a nossa sobrevivência tinha a ver com a cooperação do grupo e a vida deveria ser de um sobressalto permanente perante o risco que representavam as feras, especialmente o tigre “dentes de sabre”, nosso predador por excelência.

Tive a percepção de uma situação dessas quando, um dia, durante uma caçada, em pé, sobre o capô do jeep, com o motor desligado, perscrutava o horizonte.

Era uma savana a perder de vista em que só me aventurava munido de bússola. Polvilhada por árvores esparsas era o cenário inalterado por onde os meus antepassados teriam andado.

Ninguém falava e o silêncio só era quebrado pelo vento que passando pelo capim, não muito alto, produzia um som de uma grande suavidade, como que um murmúrio.


De repente, senti um medo ancestral, pânico, que me subiu pela coluna até à base do crânio:... “estava perdido, não via os meus companheiros, encontrava-me à mercê do tigre dentes de sabre…”
Ainda hoje, passados já quase 50 anos, guardo essa estranha sensação.


Não sei quanto tempo durou esse medo de morte. Breves instantes, com certeza, mas logo que me libertei dele, saltei para o chão, sentei-me no banco do condutor, pus rapidamente o jeep a trabalhar e debrucei-me sobre o volante recebendo no meu peito a vibração do trabalhar do motor sinal inequívoco que o “dentes de sabre” tinha ficado lá muito para trás...
 Só então recobrei totalmente daquela viagem relâmpago desde o tempo dos nossos antepassados mais remotos até ao meu querido jeep Willys.


Não contei esta estranha experiência a ninguém durante muitos anos, exactamente porque era muito estranha e a mim próprio suscitava dúvidas.
Será que, de verdade, ela aconteceu?
Dela, no entanto, ressaltaram em mim alguns sentimentos, também eles guardados em segredo:


- Admiração e reconhecimento pelos nossos antepassados que em condições tão adversas me permitiram estar ali depois de tantos e tantos anos de uma lenta, dolorosa e periclitante evolução e ter sentido, como hoje está provado cientificamente, que aquela foi mesmo a nossa terra de origem.

Mas pensar a África hoje é interrogarmo-nos como foi possível um tão grande retrocesso nas condições de vida dos seus habitantes desde que, progressivamente, ao longo dos últimos cinquenta anos, a condução política de todos os seus territórios passou para representantes legítimos das suas populações.

À laia de exemplo:

-De acordo com as Nações Unidas, até há bem pouco tempo 2/3 da população da Zâmbia estava na miséria;

-Angola é um dos 5 países mais corruptos do mundo;

-O Zimbabué, que já foi o celeiro da sub-região em que se insere, está mergulhado na miséria ao ponto do seu Presidente Mugabe ter mandado abater os animais de uma reserva eco-turística como solução imediata para matar a fome à população;

Terá sido esta a herança que os europeus lá deixaram?

Para terminar, falemos de Moçambique pela voz de Mia Couto, que começa por afirmar que “até aqui a independência não passou da liberdade de escolher outras dependências” e dirigindo-se à consciência de todos os moçambicanos, que bem poderiam ser todos os cidadãos da África sub-sariana, fala dos "sete sapatos" que é preciso descalçar:


- A ideia de que os culpados são sempre os outros;
- A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho;

-A ideia de que quem critica é um inimigo;
- A ideia de que mudar as palavras muda a realidade;
- A vergonha de ser pobre e o culto das aparências;
- A passividade perante as injustiças;
- A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros;

Por aquilo que se vê, os 7 “sapatos” de Mia Couto, bem se podem transformar nos 12 trabalhos de Hércules da mitologia greco-romana, com a diferença de que os moçambicanos não são deuses, não se podem socorrer de truques e malabarismos próprios dos deuses e, por isso, o que se lhes pede, parecendo mais simples, talvez seja mais difícil.

Geograficamente, os moçambicanos estão em cima do Vale do Rift que há milhões de anos atrás foi o berço dos nossos antepassados mais remotos. Um deles viria a transformar-se naquilo que somos hoje. Será que os moçambicanos se conseguem transformar, mesmo que não seja completamente, naquilo que o Mia Couto pretende?
- Desejamos sinceramente que sim.


NOTA

África - O Continente do Meu Fascínio:



Há anos postei aqui, no Memórias Futuras, este texto em que confessei o meu fascínio pelo continente africano. Algumas coisas mudaram para melhor ao longo desses anos mas, no essencial, para além do crescimento desmesurado das fortunas construídas à volta do petróleo, do tamanho das cidades e dos correspondentes bairros de lata, da grandeza das vivendas de luxo dos novos milionários, pouco mudou.
Não mais voltarei ao continente do meu fascínio. Depois das paisagens impressionantes, momentos exaltantes, cidades alindadas com gente humilhada lá dentro que conheci, não arrisco ver fome, miséria e degradação promovida por aqueles que lutaram pela independência mas sucumbiram à ambição do poder.
Ganharam a guerra, perderam a paz.  
Conheci, para além de Angola e Moçambique, a Zâmbia e Zimbabué em breves visitas, todos diferentes, com a marca dos colonizadores.
Sei que não é justo, peço desculpas, mas prefiro recordar as imagens dessa África que conheci, a dos colonialistas.
O mal que os outros nos fazem é menos grave do que aquele que fazemos a nós próprios.
Terrível desafio para as novas gerações destes países. 

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