sábado, abril 05, 2014

Memórias de
dois passados...







Nos meus tempos de rapaz, durante as férias de Verão na aldeia dos meus avós, na Concavada, nada me dava mais prazer e provocava maior excitação do que levantar-me de madrugada, ainda antes do nascer do sol, para ir à caça dos passarinhos ou à pesca no rio Tejo.

A ansiedade era tanta que quando o meu velho amigo Adriano, mulateiro (tratava e trabalhava com a parelha de mulas) e criado dos meus avós batia aos vidros da janela do meu quarto para me acordar, precisamente na hora e minuto combinados, ele que nunca teve relógio... já eu estava perfeitamente desperto aguardando que me chamasse.

Eu tinha por este homem uma grande amizade e escondida admiração, a amizade devida aos homens simples e bons. Lembro-me de pensar, na minha ingenuidade de jovenzinho que ainda era nesse tempo, que se alguém havia de ir para o céu seria o Adriano. Chorei sentidamente no seu funeral o que deve ter provocado a admiração da reduzida assistência.

Por que chora ele? - Devem ter pensado. Não lhe era nada, apenas neto do patrão… por que chora ele? 

- Nunca compreenderiam e eu próprio também não o saberia bem dizer mas ainda hoje, tantos anos volvidos, gosto de pensar no meu amigo Adriano… e sei que estou sozinho nesses pensamentos como o estava quando chorei no seu funeral.

Eu penso que há muito deixaram de haver pessoas como o Adriano. Sabia muita coisa sobre as estrelas e o céu porque  ele era o teto do seu quarto nas noites de verão quando fazia bom tempo.

Nunca o ouvi expressar um desejo, nunca quis nada para si mas manifestava-se agradecido quando a minha avó, pela manhã, lhe dava um cálice de aguardente como mata bicho.

 E lá ia eu, água passada pelos olhos a fugir, sapatilhas nos pés, com toda aquela força e espontaneidade dos quinze anos, caçar ou pescar como se dependesse daí a minha sobrevivência…

Sei hoje, que da mesma forma que a minha herança biológica está inscrita no meu ADN, também em qualquer “gavetinha” recôndita do meu cérebro, estão guardadas memórias de comportamentos ancestrais dos meus antepassados que viveram na Europa há cerca de 30.000 anos.

Em cada um de nós há um caçador que descende do Homem de Cro-Magnon, nosso remoto avô, que ao longo de milhares de anos tinha que se levantar cedo, talvez sem o meu entusiasmo da criança que eu fui, para fazer as suas armadilhas, perseguir e caçar os animais que depois de mortos transportava às costas para o acampamento onde as mulheres, crianças e velhos o aguardavam.

Não duvido que o prestígio, a importância, o status do meu “avô” Cro-Magnon, se media pelo tamanho e número das peças de caça que transportava para a improvisada aldeia ou seja, pela sua destreza e eficácia no abastecimento de carne ou talvez, melhor dizendo, pelo papel de liderança e coragem demonstrada dentro do grupo que empreendia as caçadas.

Essa eficácia traduzia-se em admiração que fazia dele um homem desejado pelas mulheres e respeitado pelos outros e por isso, lá estava eu, trinta mil anos depois, no regresso do rio, a “macaquear” o meu “avô Cro-Magnon, percorrendo, orgulhoso, a aldeia com o peixe de meio quilo (nas poucas vezes que o apanhava...), seguro pelas guelras num convite implícito ao aplauso de todos aqueles com quem me cruzava…

Mas antes de o levar para casa e como “cereja que se põe em cima do bolo”, ia pesá-lo na balança da mercearia do Zé Palmeiro, o mais convencido dos pescadores da aldeia que, roído de inveja, lá dizia com um sorriso de despeito, o resultado da pesagem.

Na realidade, entre os Homens de Cro-Magnon a alimentação não dependia tanto do resultado das caçadas como durante muito tempo se pensou.

A análise laboratorial dos restos encontrados nos locais onde viveram, indicam que quem mais contribuía para o sustento do grupo eram as mulheres e as crianças que percorrendo os terrenos em redor recolhiam frutos, raízes, tubérculos, ovos, que chegavam a representar, nas zonas mais quentes, 80% da totalidade dos alimentos consumidos.

Na verdade, o meu “avô” Cro-Magnon me desculpe mas, importante mesmo, nesses tempos, era a minha “avó”… isto não obstante ele ser bem apessoado. A fronte, alta, não era sobrecarregada por saliências supra-orbitrais, o queixo saliente e o occipital arredondado com um volume encefálico de 1.500 cm3, em média, pouco superior ao dos europeus actuais.

Tinha 174 cm de altura média que só agora os europeus estarão a atingir e sendo bem parecido de feições, desde que vestido, barbeado e de cabelinho cortado, ninguém o reconheceria ao passar por ele no Chiado.

De resto, a sua indumentária também não seria muito diferente da nossa, toda ela constituída por peles de animais cortadas de forma a confeccionar botas, casacos e calças bem ajustadas ao corpo graças às costuras que se tornaram possíveis devido ao uso das agulhas e dos botões feitos de osso ou chifre.

E do ponto de vista intelectual ou neurológico, se quiserem, teria perfeitamente sido capaz de ir à lua se o contexto social lhe oferecesse as condições certas.

Embora a sua esperança média de vida à nascença fosse reduzida face à grande mortalidade pré-natal e infantil, às infecções e aos múltiplos acidentes, os adolescentes e os adultos jovens eram sãos, robustos, capazes de actividade física intensa como se pode deduzir pela inserção dos músculos nos ossos e pelo estado das articulações próprias de quem tinha uma alimentação rica, equilibrada e perfeitamente adaptada às suas condições de vida.

Eram imunes à tuberculose, cancros, osteoporose, artroses, osteomalacia, que é uma doença que se manifesta pelo enfraquecimento e desmineralização dos ossos por falta de vitamina D e só raramente apresentavam cáries.

O nosso “avô” Cro-Magnon tinha, como grande caçador que era, os sentidos apurados e um grande poder de observação sobre a natureza que o rodeava e saiu vitorioso na competição demográfica que desenvolveu com o Homem de Neandertal que já se encontrava na Europa muitos milénios antes de ele chegar.

Movimentava-se melhor no terreno, com mais facilidade, formava grupos mais numerosos e menos isolados que lhe permitiam trocas com mais facilidade.

Para além disso, pelos esqueletos encontrados, verificou-se que havia, entre os homens de Cro-Magnon, duas vezes menos jovens mortos do que entre os Neandertais.

Estes, atendendo ao seu carácter mais sedentário, não se davam bem com as grandes deslocações que passaram a ser obrigados a fazer atrás das manadas de mamíferos cada vez mais escassas. Durante essas longas viagens os laços familiares enfraqueciam-se a fecundidade diminuía e a mortalidade das crianças aumentava.

Inevitavelmente, esta competição só poderia ser favorável ao nosso “avô” Cro-Magnon que, de acordo com estudos efectuados pelo demógrafo Ezra  Zubrow, da Universidade de Buffalo, em função de uma capacidade de sobrevivência superior em 1 a 2 por cento, bastam cerca de 30 gerações, ou seja, apenas um milénio para a substituição completa de um grupo.

Na realidade, os Neandertais resistiram mais tempo, talvez 10.000 anos, mas o resultado estava traçado. Alguns puderam ser absorvidos por cruzamentos e mestiçagens sucessivas, os outros, cada vez menos numerosos, recuaram diante do invasor enfraquecendo-se progressivamente.

Os seus últimos vestígios, datados de há 28.000 anos, foram encontrados numa gruta em Gibraltar, seu último refúgio sem que tivessem encontrado forças ou vontade para atravessarem a pequena distância que, nesse tempo, os separava do continente Africano de onde eram oriundos e do qual tinham saído centenas de milhar de anos atrás.  

O nosso “avô” Cro-Magnon era um artista genial dominando perfeitamente as técnicas de pintura, perspectiva, falsa perspectiva, relevo e da tradução do movimento.

O testemunho artístico que nos deixou, por exemplo, nas grutas de Lascaux, em França, consideradas a Capela Sistina da Pré-História, quando foram visitadas por Pablo Picasso, mereceram-lhe o seguinte comentário: “Nós não inventámos nada... está aqui tudo!”

Esta forma de arte denominada Pinturas Rupestres (pinturas ou gravuras na pedra) era executada, numa explicação mais moderna, por xamãs, espécie de feiticeiros, que penetrariam nas grutas e em estado de transe pintariam imagens das suas visões, uma espécie de “magia propiciatória” para o sucesso das caçadas.

A arte expressa nestas figuras está ao serviço de um mito, é todo o conhecimento que têm do mundo e que eles se esforçam por inscrever na rocha, conhecimento, é certo, mas também as dúvidas, os temores, as interrogações.

Com quem procuravam eles comunicar, que harmonia pretendiam eles estabelecer ou restabelecer indo, assim, ao encontro do sobrenatural e com que fim?

Mas essas magias não teriam sido suficientes para o sucesso das caçadas se o nosso “avô” não se tivesse ele apoiado em armas muito eficazes tais como o “propulsor” que decuplica a potência das armas de arremesso e as próprias lanças cujas pontas de pedra ou de osso eram fixadas solidamente à extremidade de paus de madeira rija convertendo-os, assim, em dardos e lanças temíveis.

O homem de Cro-Magnon, nosso “avô”, desenvolveu uma verdadeira cultura que vai muito para lá da tímida tomada de consciência manifestada pelo homem de Neandertal.

O enterro dos mortos obedecia a cerimoniais sistemáticos que variavam segundo as regiões mas que têm sempre presente a preocupação de honrar o defunto e assegurar-lhe o melhor conforto possível no além.

As sepulturas estão cheias de objectos e de jóias de osso e marfim e os corpos vestidos com roupa ornamentada com pérolas e polvilhados de ocre com armas dispostas ao lado como ornamentos.

As jóias e os adornos fabricados a partir de dentes de carnívoro, vértebras de peixe, conchas, pulseiras cinzeladas em marfim, figuras humanas ou de animais talhadas com muito realismo em chifres de cervídeo, com a preocupação de criar beleza, mas também figuras ambíguas cuja interpretação ainda hoje nos escapa.

Outras peças são mais explícitas como aquelas estatuetas esculpidas em marfim ou pedra representando mulheres de silhueta de grande ventre e seios a que os arqueólogos denominaram de Vénus, muito comuns por toda a Europa até à Sibéria, e que são símbolos de fertilidade, uma deusa mãe protectora ou talvez a imagem que o Cro-Magnon fazia da antepassada do género humano, a Eva universal.

O estilo de vida característico do nosso avô, não sendo nómada, obrigava-o no entanto, a nomadizar-se ao longo das estações do ano apropriando-se de lugares privilegiados aos quais regressava periodicamente.

Desta forma, há grupos que acabam por se encontrar frequentemente, o que os leva a comunicar, a estabelecer relações regulares, a colaborar de forma pontual e a praticarem trocas materiais e culturais.

Mas a segunda Grande Revolução estava para acontecer e o nosso “avô” Cro-Magnon iria ser, também ele, vítima das alterações climáticas na Europa com o princípio do fim da era glacial, o aumento das temperaturas e dos índices pluviométricos, o aparecimento em força das florestas, o desaparecimento progressivo das savanas, das tundras e das manadas de animais de grande porte.

De futuro, o homem iria domesticar as ervas e alguns animais selvagens pondo ambos ao seu serviço e, ao fazê-lo, passaria a ser escravo da terra e do trabalho monótono e repetitivo que ela implica.

 Daí, resultariam excedentes de alimento que mais cedo ou mais tarde, iriam ser apropriados por uns em prejuízo de outros e a terra que produzia esses alimentos deixaria de estar disponível e seria, também ela, apropriada por uns, poucos, os “senhores” da terra e a multidão dos restantes, seus servos.

A sociedade organizou-se, hierarquizou-se, sofisticou-se.

Os xamãs tornaram-se sacerdotes e as crenças e mitos evoluíram para religiões, primeiro de uma multiplicidade de deuses e mais tarde, para simplificar, mas só aparentemente, de um só.

Estavam criados os ricos e os pobres, os fracos e os poderosos, não em função das suas capacidades físicas, destreza ou coragem, como no tempo do “avô” Cro-Magnon, mas principalmente, em função do nascimento e do “ter” ou “não ter”.

Finalmente, apareceram as cidades e delas brotaram as civilizações lideradas pelos grandes chefes políticos e militares à frente dos seus enormes exércitos. As comunidades de carácter matriarcal deram lugar, pela mudança de papel desempenhado pelo homem de caçador/colector em soldado guerreiro, em sociedades patriarcais e machistas.

O nosso “avô” Cro-Magnon com a sua destreza, força e coragem e o seu apurado sentido de observação e instinto de caçador foi substituído por outro, com outras capacidades baseadas na abstracção e racionalização.

A prática da agricultura e o consequente sedentarismo, depois da descoberta da técnica que permitiu o domínio e o controle do fogo que esteve na origem da primeira Grande Revolução da humanidade, deu lugar à segunda Grande Revolução.

A primeira, fez-nos nascer como Homo Sapiens, a segunda projectou-nos para um destino que a nós próprios, que vivemos os dias de hoje, não podemos, com algum realismo, deixar de temer.

Creio que temos hoje mais razões para nos atormentarmos e temermos o futuro do que tinha o nosso “avô” Cro-Magnon… mas isto é só uma desconfiança minha…

…e se amanhã nos levantássemos de madrugada, antes do nascer do sol, e fossemos fazer uma pescaria ao rio?...

Ou então, como diz a Rita Lee:  - “Se Deus quiser ainda volto a ser índio, viver pelado pintado de verde num eterno Domingo…”

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