"Seu Vasco...." ficava ouvindo o dia inteiro... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 43
Seu Vasco.... Ficava ouvindo o dia
inteiro a partícula odiada, doía-lhe como um tapa na cara, um insulto
proposital. Humilhava-o até o fundo da alma, sentia-se enrubescer, baixava a
cabeça, perdia o gosto da festa.
Era um dia estragado. Que lhe importava
o dinheiro todo à sua disposição, a simpatia demonstrada por tanta gente, a
amizade das figuras importantes, se não era realmente um deles, se algo os
separava, estabelecia entre eles uma distância?
Havia quem invejasse Vasco,
considerando-o um privilegiado na vida, tendo tudo para ser feliz. Não era
verdade. Faltava-lhe um título a substituir aquele humilhante “seu”, anónimo e
vulgar, a confundi-lo com a malta, a ralé, o zé-povihnho.
No silêncio de sua casa de solteiro,
após as noitadas alegres, quantas vezes não pensava no assunto, ensombrecido o
rosto bonachão. O que não daria por um diploma, mesmo de dentista ou
farmacêutico, desde que lhe possibilitasse usar um anel de grau de um “Dr.”
antes do nome...
Chegou a projectar a compra de patente
da Guarda Nacional, dessas vendidas aos milhares no começo da República aos
fazendeiros do interior por alguns contos de réis.
Tantas patentes pelo sertão afora, que o
termo “coronel” tornara-se designação geral de fazendeiro rico, perdera o
colorido marcial, a dignidade das armas. Ao demais, já não se prestavam honras
militares, sequer continência, a esses coronéis; nem se lhes respeita o uso da
farda. Não adiantava, seria ridículo.
Sonhara, pois o sonho é livre, com a
nobreza papal, mas não passara de fantasia, consolo de um momento, ruindo ante
a dura realidade. Um título de conde do Vaticano custava um dinheirão absurdo,
estava inteiramente fora de suas possibilidades, nem toda sua fortuna bastaria
para pagá-lo.
Em Salvador existia apenas um nobre
papalino, era um dos Magalhães, sócio da grande firma junto à qual a casa
Moscoso & Cia. Ltda. era uma bodega de estrada.
Esse Magalhães construíra, sozinho, de
seu bolso, uma igreja, enviara um Cristo de ouro ao Papa, sustentava padres e
confrarias, empregara duzentos contos de réis para obter um condado, viajara
para Roma, e ainda assim apenas conseguira o título de comendador.
Não bastava o dinheiro, fazia-se
necessário haver prestado relevantes serviços à Igreja, um fervor religioso e
uma intimidade com os claustros que não eram, evidentemente, o forte de Vasco
Moscoso de Aragão, boémio de poucas missas e escassas relações eclesiásticas,
nome desconhecido no Palácio Episcopal.
Na cama, mergulhado em seus pensamentos,
por vezes uma cansada e satisfeita mulher a seu lado ressonando, Vasco renegava
a memória do avô, mondrongo de mentalidade estreita, para quem só o dinheiro
existia. Por que, em lugar de metê-lo ainda criança no sobradão da Ladeira da
Montanha, a varrer o piso, levar recados, carregar fardos, não o fizera estudar
preparatórios, cursar uma Faculdade, de Medicina ou de Direito, elevando--o na
escala social?
Nada disso: o velho Moscoso só pensava
na firma, em preparar o neto para um dia substituí-lo.
Afastava a imagem do avô de quem não
guardara recordações que valessem a pena rememorar. Deixava a imaginação
cavalgar solta, durante minutos era feliz, completamente, no prazer de apor a
seu nome os cobiçados impossíveis títulos.
“Doutor Vasco Moscoso de Aragão,
advogado”: via-se na tribuna do júri, de toga e capelo, o dedo em riste em direcção
ao promotor num aparte fulminante, ou, no momento da defesa, a contar, com voz
trémula, a história do réu, vítima e não criminoso, impotente ante o destino.
Homem bom e trabalhador, cumpridor de
seus deveres, pai de família amantíssimo, esposo dedicado, louco pela mulher, e
a leviana a cobri-lo de chifres... Não, não era expressão digna do júri...
E a leviana, sem levar em conta o amor
do marido, a inocência dos filhos, o decoro do lar, as juras de fidelidade ante
o padre, arrastava o nome honrado do marido no leito da traição... Assim, sim...
Gostava da frase, comovia-se ele
próprio, seu nome célebre como os dos maiores advogados do Estado, citado nas
conversas, elogios sem conta: “que talento! que eloquência! arranca lágrimas
mesmo de um coração de pedra! não há jurado que resista!”
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