terça-feira, abril 01, 2014

"Seu Vasco...." ficava ouvindo o dia inteiro...
OS VELHOS

MARINHEIROS

 Episódio Nº 43










Seu Vasco.... Ficava ouvindo o dia inteiro a partícula odiada, doía-lhe como um tapa na cara, um insulto proposital. Humilhava-o até o fundo da alma, sentia-se enrubescer, baixava a cabeça, perdia o gosto da festa.

Era um dia estragado. Que lhe importava o dinheiro todo à sua disposição, a simpatia demonstrada por tanta gente, a amizade das figuras importantes, se não era realmente um deles, se algo os separava, estabelecia entre eles uma distância?

Havia quem invejasse Vasco, considerando-o um privilegiado na vida, tendo tudo para ser feliz. Não era verdade. Faltava-lhe um título a substituir aquele humilhante “seu”, anónimo e vulgar, a confundi-lo com a malta, a ralé, o zé-povihnho.

No silêncio de sua casa de solteiro, após as noitadas alegres, quantas vezes não pensava no assunto, ensombrecido o rosto bonachão. O que não daria por um diploma, mesmo de dentista ou farmacêutico, desde que lhe possibilitasse usar um anel de grau de um “Dr.” antes do nome...

Chegou a projectar a compra de patente da Guarda Nacional, dessas vendidas aos milhares no começo da República aos fazendeiros do interior por alguns contos de réis.

Tantas patentes pelo sertão afora, que o termo “coronel” tornara-se designação geral de fazendeiro rico, perdera o colorido marcial, a dignidade das armas. Ao demais, já não se prestavam honras militares, sequer continência, a esses coronéis; nem se lhes respeita o uso da farda. Não adiantava, seria ridículo.

Sonhara, pois o sonho é livre, com a nobreza papal, mas não passara de fantasia, consolo de um momento, ruindo ante a dura realidade. Um título de conde do Vaticano custava um dinheirão absurdo, estava inteiramente fora de suas possibilidades, nem toda sua fortuna bastaria para pagá-lo.

Em Salvador existia apenas um nobre papalino, era um dos Magalhães, sócio da grande firma junto à qual a casa Moscoso & Cia. Ltda. era uma bodega de estrada.

Esse Magalhães construíra, sozinho, de seu bolso, uma igreja, enviara um Cristo de ouro ao Papa, sustentava padres e confrarias, empregara duzentos contos de réis para obter um condado, viajara para Roma, e ainda assim apenas conseguira o título de comendador.

Não bastava o dinheiro, fazia-se necessário haver prestado relevantes serviços à Igreja, um fervor religioso e uma intimidade com os claustros que não eram, evidentemente, o forte de Vasco Moscoso de Aragão, boémio de poucas missas e escassas relações eclesiásticas, nome desconhecido no Palácio Episcopal.

Na cama, mergulhado em seus pensamentos, por vezes uma cansada e satisfeita mulher a seu lado ressonando, Vasco renegava a memória do avô, mondrongo de mentalidade estreita, para quem só o dinheiro existia. Por que, em lugar de metê-lo ainda criança no sobradão da Ladeira da Montanha, a varrer o piso, levar recados, carregar fardos, não o fizera estudar preparatórios, cursar uma Faculdade, de Medicina ou de Direito, elevando--o na escala social?

Nada disso: o velho Moscoso só pensava na firma, em preparar o neto para um dia substituí-lo.

Afastava a imagem do avô de quem não guardara recordações que valessem a pena rememorar. Deixava a imaginação cavalgar solta, durante minutos era feliz, completamente, no prazer de apor a seu nome os cobiçados impossíveis títulos.

“Doutor Vasco Moscoso de Aragão, advogado”: via-se na tribuna do júri, de toga e capelo, o dedo em riste em direcção ao promotor num aparte fulminante, ou, no momento da defesa, a contar, com voz trémula, a história do réu, vítima e não criminoso, impotente ante o destino.

Homem bom e trabalhador, cumpridor de seus deveres, pai de família amantíssimo, esposo dedicado, louco pela mulher, e a leviana a cobri-lo de chifres... Não, não era expressão digna do júri...

E a leviana, sem levar em conta o amor do marido, a inocência dos filhos, o decoro do lar, as juras de fidelidade ante o padre, arrastava o nome honrado do marido no leito da traição... Assim, sim...

Gostava da frase, comovia-se ele próprio, seu nome célebre como os dos maiores advogados do Estado, citado nas conversas, elogios sem conta: “que talento! que eloquência! arranca lágrimas mesmo de um coração de pedra! não há jurado que resista!” 

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