quinta-feira, maio 29, 2014

Assim dançava nas festas do Palácio....
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 92










E a morena peituda completou em voz baixa:

- Pelo jeito que vão, ela terá pelo menos gémeos...

Durante todo o desenrolar da víspora, o comandante alimentara a esperança de voltar com Clotilde ao tombadilho na continuação do passeio e da conversa, sentia-se romântico e perturbado.

Estava para propor-lhe abandonarem a sala, pretextando o calor, oferecendo-lhe a brisa marinha e as estrelas do descampado céu, quando um grupo de moças e rapazes aproximou-se da mesa.

- Com licença, Comandante - e dirigiam-se a Clotilde: - A senhora podia tocar umas coisinhas para a gente dançar...

Fez-se importante e adulada:

- Não gosto de tocar música de dança. Executo meus preferidos...

- Ohi - disse em ton de súplica uma jovem de seus dezoito anos, flor das morenas de Pernambuco - é o último dia a bordo, para mim pelo menos. A gente queria dançar um pouco. - A seu lado um rapagão suplicava com os olhos, a sorrir para Clotilde.

- Toque, sim. seja boazinha ... - pediu outra moça, de bronzeada pele, escorridos cabelos negros, beleza mameluca, olhos de labareda.

Insistiam os rapazes, e toda aquela juventude apenas começando a viver, tão ansiosa e frágil, comoveu o comandante e ele sacrificou o esperado passeio, também instou:

- Toque, sim. Gosto tanto de ouvi-la...

- Nesse caso ... Só para lhe fazer a vontade, Comandante. Foi para o piano, acompanhada do grupo jovial, avisando:

- Não posso demorar . . . Jasmim está me esperando...

Os sons apenas começavam a elevar-se e já a morena pernambucana rodopiava nos braços do atlético namorado, conhecimento da viagem, paixão fulminante. Ia ele para Fortaleza onde vivia, trabalhava num banco. Prometia visitá-la em Recife no fim do ano, por ocasião do Natal.

A mameluca de olhos fundos de incêndio dirigiu-se ao comandante, fez-lhe divertida mesura:

- Dá-me a honra, Comandante, dessa contradança?

Levantou-se Vasco, tomou da mão da moça. Fora emérito dançarino, pé-de-valsa conhecido nos seus tempos da Pensão Monte Cario, sua fama de bailarino até hoje recordada pelos marujos seus contemporâneos nas costas do Médio e do Extremo-Oriente, no Mediterrâneo e no Mar do Norte.

 Havia duas maneiras de dançar: a “la bruta”, os corpos juntos, rosto contra rosto, excitando-se ao cálido contacto do par. Assim dançava na Pensão Monte Cario, no cabaré do Dragão Amarelo, em Hong-Kong, na misteriosa cave Nilo Azul, em Alexandria.

 E “Ia familiar”, os dedos acenas tocando as costas do par, com um palmo de separação entre os dois, a postura austera, conversando com a dama. Assim dançava nas festas do Palácio, nas recepções da sociedade baiana, nos bailes dos grandes paquetes que faziam a linha entre a Europa e a Austrália.

Assim iniciou o baile com a moça de sangue índio, de perturbadora beleza lunar. Por que ela lembrava-lhe Dorothy, se não se pareciam?

Mas havia algo de comum entre as duas, entre a rapariga de Feira de Sant’Ana e aquela senhorita de Belém: os olhos inquietos e fulvos, a mal-contida ânsia, um espasmo em cada gesto, no mais simples, a mesma pressa e avidez de amor. Eram, uma e outra, a fêmea simplesmente.

E logo a sentiu contra si, a coxa a tocar-lhe, o seio a crescer em seu peito, o negro cabelo escorrido a roçar-lhe a face. A moça fechara os olhos e mordia o lábio inferior, Vasco teve medo. Do piano, Clotilde olhava de cenho carregado, ele tentou afastar aquele corpo necessitado e louco, mas ela o mantinha próximo.

Compreendeu, uma humildade aprendida em Dorothy, não ser a ele, Vasco, sessentão de cabelos brancos, que ela se prendia e entregava na dança. Era ao homem apenas, não lhe importava a idade, a cor, a elegância, a beleza.

Não demorou a música, felizmente. Clotilde abreviara a partitura, os pares se separaram, Vasco agradeceu:

- Muito obrigado, senhorita.

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