segunda-feira, maio 12, 2014

Bastava bater os olhos naquele horror e o estômago revoltava-se
OS VELHOS 

MARINHEIROS

Episódio Nº 77

(De Jorge Amado)












A polícia ficou maluca, cercou o quarteirão. Enquanto isso, ele saía da redacção do Estado de São Paulo, em companhia do Dr. Júlio de Mesquita, vestido de padre. Atravessou bem no meio dos policiais...  

Todo mundo sabe disso.

- Conversas... Não acredito numa só palavra. Esses peralvilhos estão em Buenos Aires, a brigar uns com os outros. Não se atrevem a pôr o pé no Brasil, vivem mandando recados pedindo amnistia. Uns jovens sem juízo, com a cabeça virada. O que, aliás, não admira, quando até um Artur Bernardes se fantasia de revolucionário... Não se atrevem...

- Não se atrevem? E a fronteira não é no Rio Grande do Sul?

- Getúlio Vargas não é louco, não vai se meter com esses alucinados.

Então eles iriam fazer um movimento para botar Getúlio no Catete? Se tivessem alguma possibilidade, não era Getúlio quem iria governar. Seria o Isidoro ou o Prestes. Não pensa assim, Comandante?

Vasco preferia não pensar, sobretudo não olhar para a sopa, um creme branco, repugnante, de todo contra-indicado nas condições do mar naquela noite.

Deveria chamar a atenção do comissário, não repetisse tal descuido, o menu de bordo devia levar em conta as previsões atmosféricas.

Empurrava o prato, fazia um gesto vago em resposta ao senador, perdia as esperanças na vinda atrasada da dona do cãozinho. O deputado voltava à carga, após limpar, inconsciente!, o prato de sopa:

- Pois fique não acreditando, continue atrelado ao carro desse cabeçudo que é Washington, e quando se der conta será tarde, a fogueira estará acesa sob seus pés.

Em minha última viagem para o Norte, num Ita igual a este, sabe quem vinha a bordo e ficou no Recife? João Alberto, sim, senhor.

Posso lhe dizer, porque ele já não está ali, sei com certeza. Viajava como caixeiro de uma firma do Rio, mas eu logo o reconheci. Todos esses marítimos - e apontava o comandante - estão connosco, com a Revolução.

Trazem os conspiradores escondidos em suas cabines. Aliás toda a Nação está com eles. Não é verdade, Comandante?

Uma pura e revoltante provocação, aquele outro prato, posta de peixe a nadar em molho de tomate e camarões, acompanhada de puré de batata onde se viam amarelos filetes de manteiga.

Bastava bater os olhos naquele horror e o estômago embrulhava-se. O comandante, para evitar a fixa mirada e a perigosa pergunta do deputado, fez um esforço desesperado, levou uma garfada à boca amarga.

Aquele deputado da Paraíba era, evidentemente, um leviano: a contar de revolucionários e conspirações, a engolir vorazmente os pedaços de peixe, os camarões, o amanteigado puré.

Poucas vezes havia descido tanto a natureza humana, reflectiu o comandante ante aquele asqueroso espectáculo. Indicando com um estalo dos lábios a óptima qualidade do peixe, o deputado persistia a ligar os fios de sua mazorca:

- Vai ver e aqui mesmo, neste navio, está o Prestes ou o Siqueira. Escondido na cabine do médico ou do maquinista. Ou na do nosso bravo Comandante, por que não?

O senador estremeceu: apesar de sua aparente seriedade e de sua confiança na força do governo, aqueles boatos perturbavam-no. Pois não lhe confirmara a própria polícia ter passado Juarez Távora, não há muito tempo, por Natal? 

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