Bastava bater os olhos naquele horror e o estômago revoltava-se |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 77
(De Jorge Amado)
A polícia ficou maluca, cercou o
quarteirão. Enquanto isso, ele saía da redacção do Estado de São Paulo, em
companhia do Dr. Júlio de Mesqui ta,
vestido de padre. Atravessou bem no meio dos policiais...
Todo mundo sabe disso.
- Conversas... Não acredito numa só
palavra. Esses peralvilhos estão em Buenos Aires , a brigar uns com os outros. Não se
atrevem a pôr o pé no Brasil, vivem mandando recados pedindo amnistia. Uns
jovens sem juízo, com a cabeça virada. O que, aliás, não admira, quando até um
Artur Bernardes se fantasia de revolucionário... Não se atrevem...
- Não se atrevem? E a fronteira não é no
Rio Grande do Sul?
- Getúlio Vargas não é louco, não vai se
meter com esses alucinados.
Então eles iriam fazer um movimento para
botar Getúlio no Catete? Se tivessem alguma possibilidade, não era Getúlio quem
iria governar. Seria o Isidoro ou o Prestes. Não pensa assim, Comandante?
Vasco preferia não pensar, sobretudo não
olhar para a sopa, um creme branco, repugnante, de todo contra-indicado nas
condições do mar naquela noite.
Deveria chamar a atenção do comissário,
não repetisse tal descuido, o menu de bordo devia levar em conta as previsões
atmosféricas.
Empurrava o prato, fazia um gesto vago
em resposta ao senador, perdia as esperanças na vinda atrasada da dona do
cãozinho. O deputado voltava à carga, após limpar, inconsciente!, o prato de
sopa:
- Pois fique não acreditando, continue
atrelado ao carro desse cabeçudo que é Washington, e quando se der conta será
tarde, a fogueira estará acesa sob seus pés.
Em minha última viagem para o Norte, num
Ita igual a este, sabe quem vinha a bordo e ficou no Recife? João Alberto, sim,
senhor.
Posso lhe dizer, porque ele já não está
ali, sei com certeza. Viajava como caixeiro de uma firma do Rio, mas eu logo o
reconheci. Todos esses marítimos - e apontava o comandante - estão connosco,
com a Revolução.
Trazem os conspiradores escondidos em
suas cabines. Aliás toda a Nação está com eles. Não é verdade, Comandante?
Uma pura e revoltante provocação, aquele
outro prato, posta de peixe a nadar em molho de tomate e camarões, acompanhada
de puré de batata onde se viam amarelos filetes de manteiga.
Bastava bater os olhos naquele horror e
o estômago embrulhava-se. O comandante, para evitar a fixa mirada e a perigosa
pergunta do deputado, fez um esforço desesperado, levou uma garfada à boca
amarga.
Aquele deputado da Paraíba era,
evidentemente, um leviano: a contar de revolucionários e conspirações, a
engolir vorazmente os pedaços de peixe, os camarões, o amanteigado puré.
Poucas vezes havia descido tanto a
natureza humana, reflectiu o comandante ante aquele asqueroso espectáculo.
Indicando com um estalo dos lábios a óptima qualidade do peixe, o deputado
persistia a ligar os fios de sua mazorca:
- Vai ver e aqui
mesmo, neste navio, está o Prestes ou o Siqueira. Escondido na cabine do médico
ou do maqui nista. Ou na do nosso
bravo Comandante, por que não?
O senador estremeceu: apesar de sua
aparente seriedade e de sua confiança na força do governo, aqueles boatos
perturbavam-no. Pois não lhe confirmara a própria polícia ter passado Juarez
Távora, não há muito tempo, por Natal?
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home