Fachada da Biblioteca de Ephesos bem conservada... |
A Cidade
de
Ephesos
Será que o nosso cérebro consegue guardar experiências vividas pelos nossos antepassados mesmo de tempos remotos?
Haverá algum recanto no
cérebro, que se revela como a mais intrincada, complexa e misteriosa máquina da
natureza, que funcione como uma espécie de arquivo morto de sensações e experiências
que marcaram as vidas de muitas gerações que nos antecederam e que por isso
deixaram marcas que não desapareceram completamente?
É sabido já que através da
comparação dos registos do ADN se pode saber hoje que duas pessoas de raças
diferentes tiveram um progenitor comum muitos milhares de anos atrás o que
significa que, em termos biológicos, o passado mais remoto se liga ao presente
através de um fio condutor inserido no ADN das pessoas.
E a pergunta que faço é se
comportamentos de vida, importantes em termos de sobrevivência, repetidos
durante muitas e muitas gerações que nos precederam não poderão ter deixado
alguma marca num local recôndito do nosso cérebro.
Tive uma experiência interessante
há muitos anos atrás quando, em silêncio, de pé, sobre o capôt de um jeep,
olhava à minha volta, a perder de vista, a savana africana…apenas capim,
árvores esparsas e uma ligeira brisa que perpassava por entre elas.
De repente, apoderou-se de
mim uma sensação de pânico, mais que simples medo: estava só, perdido dos meus
companheiros de percurso, indefeso, à mercê das feras.
Não sei quantos segundos terá
durado aquela estranha sensação, apenas um lapso de tempo, por certo, mas com
um forte impacto que me levou rapidamente a saltar para o chão e a
reconfortar-me com o som delicioso do motor do jeep que rapidamente pus a
trabalhar e me reconduziu ao presente numa autêntica fuga àquele passado
longínquo.
Quantos antepassados meus,
naquele cenário onde tudo começou para a humanidade e onde pouco ou nada deverá
ter mudado até àquele momento, não teriam vivido o drama de uma morte violenta
nas garras e dentes de uma fera que bem poderia ser o tigre dentes de sabre,
nosso habitual carrasco, especialmente quando nos apanhava afastados do grupo a
que pertencíamos por laços de parentesco?
E por que não, momentos
terríveis de pânico, infelizmente vulgares para eles, vividos ao longo de
tantas gerações por tantos antepassados nossos poderem ser recordados por um
seu descendente numa situação de especial e rara inspiração no cenário adequado?
Lembrei-me, novamente, desta
minha estranha experiência com mais de 40 anos quando, há dias, tive
oportunidade de visitar no sul da Turquia as ruínas da cidade de Epheso.
Epheso foi a primeira cidade
da Ásia Menor nos tempos antigos, ainda anteriores a Cristo e a 4ª do Império
Romano em dimensão e importância, meio milhão de habitantes e pode ser
considerada o berço da nossa “nacionalidade” talvez mais que qualquer outro
local.
Ocupada pelos Gregos desde
1200 AC até 1923, dali irradiou a religião de Cristo e o pensamento científico,
ali viveram as primeiras comunidades secretas de cristãos e em 400 DC teve
lugar o 3º Concílio ecuménico.
Dispunha, ao tempo, da 3ª
maior biblioteca do mundo com 12000 livros, depois da de Alexandria e Pérgamo,
e a fachada principal de dois andares e 16 colunas repartidas pelo piso térreo
e 1º andar ainda lá estão para as podermos admirar.
O seu teatro para 25000
pessoas permanece e é utilizado para espectáculos musicais e juntamente com o
de Epidauros, na Grécia, é dos mais bem conservados.
S. João viveu, morreu e
escreveu aqui o seu Evangelho, S. Paulo visitou a cidade 3 vezes e esteve aqui
preso e o grande filósofo Heraclito, que pertencia a uma das famílias mais
importantes da cidade, foi o autor da célebre frase de que “ não se entra duas
vezes no mesmo rio porque tudo se move excepto o próprio movimento e numa
segunda vez as águas do rio já não são as mesmas e nós próprios também não”,
como hoje sabemos pela constante renovação das células do corpo humano.
Acerca dele, conta Diógenes,
que retirado do templo de Artémia divertia-se a jogar com as crianças quando,
chamado à atenção pelos efésios lhes perguntou:
-“ De que vos admirais,
perversos? Que é melhor: fazer isto ou administrar a República convosco?”
Tales, um dos sete sábios da
Grécia Antiga, era de Mileto, cidade próxima de Epheso, a sul e com ela
constituíram dois berços do pensamento filosófico.
Tales era, igualmente, para
alem de filósofo, o primeiro que se conhece no Ocidente, fundador da Escola
Jónica, matemático e astrónomo tendo sido a primeira pessoa que mediu o tempo
com precisão utilizando um relógio solar denominado “gnômon”e previu, também
pela primeira vez, um eclipse solar no ano de 585 AC e que ocorreu, na
realidade, em 28 de Maio desse ano e surpreendeu o Faraó do Egipto calculando a
altura da pirâmide de Kuéope a partir da sombra projectada por uma vara
espetada no chão.
Tales era mais velho que Heraclito
que nasceu em 540 AC e ainda era menino quando o primeiro faleceu o que
permitiu que o seu pensamento sobre o dinamismo das coisas fosse retomado e
problematizado por este último.
Como se diria hoje, quase
tudo o que foi gente importante daquela época, imperadores, sábios, filósofos,
apóstolos, políticos, viveu ou passou por Epheso e a marca que lá deixaram é a
marca que nós hoje ainda transportamos na nossa sociedade, a própria ideia da
democracia é de Heráclito, no nosso pensamento de carácter científico e nas
nossas convicções religiosas relacionadas com o Cristianismo.
Mas a importância desta
cidade e as imagens magníficas das suas ruínas podem facilmente ser observadas
na Internet e nos livros mas para nos sentirmos, através de um pequeno exercício
de imaginação, a passear ao fim da tarde, ao lado destas célebres figuras,
vestindo como elas as túnicas da época acompanhados da família e dos escravos,
é preciso ir lá e pisar as lajes hoje polidas e desgastadas da avenida por onde
eles passavam.
Mais uma sensação estranha
mas esta agradável de reencontro com o passado, um passado recente na história
da humanidade, importante e decisivo para aquilo que hoje somos do ponto de
vista cultural, político e religioso.
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