sexta-feira, maio 23, 2014

Não dispensamos, Comandante, fazemos questão.
OS VELHOS

MARINHEIROS
 (Jorge Amado)


Episódio Nº 87









Idosas senhoras abandonavam o tricô e o crochê, na emoção da narrativa. Como dispensar atenção à agulha quando o comandante se arrastava na coberta, arriscando a vida, podendo ser levado pelos vagalhões descomunais, para arrancar, de sob o madeirame do mastro partido por um raio, o esquelético marinheiro hindu, de pernas e costelas rotas.

Parou a ouvi-lo, em respeitoso silêncio, o primeiro-piloto. Encostou-se à porta, acendeu um cigarro, o comandante não chegou a vê-lo de tão entretido em seu relato... Passava pelo lado de fora o chefe das máquinas, o primeiro-piloto o chamou, ficaram os dois a escutar.

Quando, pelo fim da tarde, voltou à ponte de comando, surpreendeu o primeiro-piloto a comentar com o imediato, com os outros pilotos e com o médico, as suas aventuras. Ouviu apenas um pedaço de frase:

—... foi se arrastando pelo tombadilho como uma serpente...

Silenciou o moço ao vê-lo, o imediato disse:

- Muito bem, Comandante. Aqui estávamos a ouvir suas façanhas.

Uma dessas noites, vamos abrir uma garrafa e o senhor vai nos relatar essas histórias gloriosas. Nós passamos a vida a subir e descer essa costa, onde não sucede nada - apontava-lhe o dedo. - O senhor vai ter de nos contar suas viagens com todos os detalhes...

- Coisas de pouca monta, não vale a pena. Para distrair os passageiros, vá lá. Mas, aos senhores, homens do mar ...

- Não dispensamos, Comandante. Fazemos questão.
Ficou olhando as meretrizes na coberta do porão. Até à ponte subia a voz agradável da mulata, na marchinha política:

“Seu Julinho vem, ,
Seu Julinho vem
Se o mineiro
Lá de cima descuidar,
Seu Jiílinho vem,
Seu Julinho vem,
Vem mas custa
Muita gente há de chorar”.

Deu um bordejo pela segunda classe, desceu à terceira. Ali viajavam, de regresso ao Nordeste, na mesma dramática pobreza, retirantes fugidos nos anos da seca para as faladas terras do Sul, onde havia trabalho e dinheiro.

Um dia a esperança de mudar o destino levara aqueles homens e mulheres a palmilhar os caminhos da caatinga, atravessar os sertões, cruzar os caudalosos rios e os campos gerais, no rumo de São Paulo.

Hoje só lhes resta o desejo de voltar à terra natal, árida e pobre, porém a deles, onde nasceram e onde desejam morrer. Era um espectáculo deprimente e o comandante voltou às modinhas e sambas da segunda classe.

As mulheres da vida, ao vê-lo aproximar-se, compunham-se, sentando-se mais decentemente, baixando os vestidos sobre os joelhos, afastando-se dos estudantes a boliná-las. Parou de cantar a mulata, apenas o violão prosseguiu em seu lamento. Bonita voz possuía a cantora, o comandante não desejava estragar a alegria de ninguém:

- Estejam à vontade ... E por que aquela ali parou de cantar? Continue, por favor, eu estava gostando.

- O Comandante é gente boa .- riu uma aventalhada.

- Um camaradão - decidiu um estudante. - Na véspera de chegar a Fortaleza vamos lhe fazer uma serenata.

- Muito obrigado, meu amigo.

Mas as raparigas não relaxavam a posição de forçada compostura, não voltava a mulata a cantar. Uma pena, pensou Vasco, retirando-se.

Na primeira classe, os passageiros começavam a chegar do banho vespertino, substituídas as camisas de manga curta e as calças de brim, os leves vestido, pelos ternos de casimira e as toaletes de jantar.

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