Não dispensamos, Comandante, fazemos questão. |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 87
Idosas senhoras abandonavam o tricô e o
crochê, na emoção da narrativa. Como dispensar atenção à agulha quando o
comandante se arrastava na coberta, arriscando a vida, podendo ser levado pelos
vagalhões descomunais, para arrancar, de sob o madeirame do mastro partido por
um raio, o esquelético marinheiro hindu, de pernas e costelas rotas.
Parou a ouvi-lo, em respeitoso silêncio,
o primeiro-piloto. Encostou-se à porta, acendeu um cigarro, o comandante não
chegou a vê-lo de tão entretido em seu relato... Passava pelo lado de fora o
chefe das máqui nas, o
primeiro-piloto o chamou, ficaram os dois a escutar.
Quando, pelo fim da tarde, voltou à
ponte de comando, surpreendeu o primeiro-piloto a comentar com o imediato, com
os outros pilotos e com o médico, as suas aventuras. Ouviu apenas um pedaço de
frase:
—... foi se arrastando pelo tombadilho
como uma serpente...
Silenciou o moço ao vê-lo, o imediato
disse:
- Muito bem, Comandante. Aqui estávamos a ouvir suas façanhas.
Uma dessas noites, vamos abrir uma
garrafa e o senhor vai nos relatar essas histórias gloriosas. Nós passamos a
vida a subir e descer essa costa, onde não sucede nada - apontava-lhe o dedo. -
O senhor vai ter de nos contar suas viagens com todos os detalhes...
- Coisas de pouca monta, não vale a
pena. Para distrair os passageiros, vá lá. Mas, aos senhores, homens do mar ...
- Não dispensamos, Comandante. Fazemos
questão.
Ficou olhando as meretrizes na coberta
do porão. Até à ponte subia a voz agradável da mulata, na marchinha política:
“Seu Julinho vem, ,
Seu Julinho vem
Se o mineiro
Lá de cima descuidar,
Seu Jiílinho vem,
Seu Julinho vem,
Vem mas custa
Muita gente há de chorar”.
Deu um bordejo pela segunda classe,
desceu à terceira. Ali viajavam, de regresso ao Nordeste, na mesma dramática
pobreza, retirantes fugidos nos anos da seca para as faladas terras do Sul,
onde havia trabalho e dinheiro.
Um dia a esperança de mudar o destino
levara aqueles homens e mulheres a palmilhar os caminhos da caatinga,
atravessar os sertões, cruzar os caudalosos rios e os campos gerais, no rumo de
São Paulo.
Hoje só lhes resta o desejo de voltar à
terra natal, árida e pobre, porém a deles, onde nasceram e onde desejam morrer.
Era um espectáculo deprimente e o comandante voltou às modinhas e sambas da
segunda classe.
As mulheres da vida, ao vê-lo
aproximar-se, compunham-se, sentando-se mais decentemente, baixando os vestidos
sobre os joelhos, afastando-se dos estudantes a boliná-las. Parou de cantar a
mulata, apenas o violão prosseguiu em seu lamento. Bonita voz possuía a
cantora, o comandante não desejava estragar a alegria de ninguém:
- Estejam à vontade ... E por que aquela
ali parou de cantar? Continue, por favor, eu estava gostando.
- O Comandante é gente boa .- riu uma
aventalhada.
- Um camaradão - decidiu um estudante. -
Na véspera de chegar a Fortaleza vamos lhe fazer uma serenata.
- Muito obrigado, meu amigo.
Mas as raparigas não relaxavam a posição
de forçada compostura, não voltava a mulata a cantar. Uma pena, pensou Vasco,
retirando-se.
Na primeira classe, os passageiros
começavam a chegar do banho vespertino, substituídas as camisas de manga curta
e as calças de brim, os leves vestido, pelos ternos de casimira e as toaletes
de jantar.
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