sábado, maio 24, 2014

Não quer dar umas voltas para abrir o apetite?...
OS VELHOS
MARINHEIROS

Episódio Nº 88












Também ele necessitava trocar de farda, vestir a azul, com a comenda.

Demorou ainda alguns minutos, porém. Porque, perfumada, os cabelos em cachos cuja perfeição custara-lhe com certeza grande parte da tarde, vestido majestoso, um xale de seda na mão, aqueles olhos de quem conduzia secreto desgosto, e sem o pequinês (detalhe alvissareiro), vinha deslizando Clotilde pelo convés.

Pulsou mais forte o coração do comandante. Ela já o enxergara e atirava-lhe um adeusinho que era ao mesmo tempo um chamado.

Aproximou-se:

- É uma deusa do mar...

- Comandante... - cobria os olhos com o xale, para logo retirá-lo e perguntar com voz dengosa:

- Não quer dar umas voltas para abrir o apetite?

- Nada desejaria mais. Devo, porém, trocar-me para estar digno de sua elegância no jantar... Mas, se me esperar um instante, vou buscá-la daqui a pouco no salão.

- Esperarei, mas não demore, seu adulador.

Quando voltou, o desafinado piano do salão dava tudo que podia na partitura de uma ária de La Bohème. Vasco admirava a música clássica com respeito mas sem intimidade, sem verdadeira estima.

Certa vez, arrastado pelo Coronel Pedro de Alencar, assistira a uma ópera levada no Teatro São João por decadente companhia italiana, extraviada na Bahia ao fim de penosa excursão pelos palcos da América Latina.

O coronel adorava as óperas, possuía um gramofone e discos com árias cantadas por Caruso. Convenceu Vasco da oportunidade única que o destino lhe oferecia de ouvir barítonos e tenores, um renomado baixo, mavioso soprano e o não menos mavioso contralto, na apresentação de La Bohème, com cenários e tudo.

 Decidiu-se, apesar dos conselhos reiterados de Jerónimo e de Georges porque era uma ocasião a mais para exibir a farda de gala e a Ordem de Cristo, lá se foi com o coronel.

Resultou numa caceteação em regra, um suadouro terrível. Devia pesar a soprano seus bons cento e vinte quilos, em compensação o tenor era um fio de gente, magérrimo. Vasco sentia vontade de rir quando a volumosa cacarejadora perguntava:

Mi chiamano Mimí
Ma perché?
Non só.
Il mio nome è Lúcia.


O Coronel Pedro de Alencar deliciava-se, sabia parte da ópera de memória. Abafado de calor, Vasco renegava a vaidade que o fizera aceitar o convite só para envergar a farda e a condecoração.

Quando a soprano, vendendo saúde e banhas, despenhou-se frágil e tísica nos braços evidentemente incapazes de sustê-la do raquítico tenor, Vasco não pôde conter o riso, com grande indignação do coronel, que o tragou de ignorante e burro.

 Desde então guardara conveniente distância da música chamada erudita, certamente digna da maior admiração, mas muito elevada para ele, acima de sua capacidade.

Reconhecia agora ao piano uma daquelas árias de lamentável memória. Só não recuou porque Clotilde estava a esperá-lo para uma volta pelo tombadilho antes do jantar, com seu vestido de tafetá, os bandos do cabelo, e um mundo de esperança na voz desfalecente.

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