Não quer dar umas voltas para abrir o apetite?... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 88
Também ele necessitava trocar de farda, vestir a azul, com a comenda.
Demorou ainda alguns minutos, porém.
Porque, perfumada, os cabelos em cachos cuja perfeição custara-lhe com certeza
grande parte da tarde, vestido majestoso, um xale de seda na mão, aqueles olhos
de quem conduzia secreto desgosto, e sem o pequi nês
(detalhe alvissareiro), vinha deslizando Clotilde pelo convés.
Pulsou mais forte o coração do
comandante. Ela já o enxergara e atirava-lhe um adeusinho que era ao mesmo
tempo um chamado.
Aproximou-se:
- É uma deusa do mar...
- Comandante... - cobria os olhos com o
xale, para logo retirá-lo e perguntar com voz dengosa:
- Não quer dar umas voltas para abrir o
apetite?
- Nada desejaria mais. Devo, porém,
trocar-me para estar digno de sua elegância no jantar... Mas, se me esperar um
instante, vou buscá-la daqui a pouco
no salão.
- Esperarei, mas não demore, seu
adulador.
Quando voltou, o desafinado piano do
salão dava tudo que podia na partitura de uma ária de La Bohème. Vasco
admirava a música clássica com respeito mas sem intimidade, sem verdadeira
estima.
Certa vez, arrastado pelo Coronel Pedro
de Alencar, assistira a uma ópera levada no Teatro São João por decadente
companhia italiana, extraviada na Bahia ao fim de penosa excursão pelos palcos
da América Latina.
O coronel adorava as óperas, possuía um
gramofone e discos com árias cantadas por Caruso. Convenceu Vasco da
oportunidade única que o destino lhe oferecia de ouvir barítonos e tenores, um
renomado baixo, mavioso soprano e o não menos mavioso contralto, na
apresentação de La Bohème ,
com cenários e tudo.
Decidiu-se, apesar dos conselhos reiterados de
Jerónimo e de Georges porque era uma ocasião a mais para exibir a farda de gala
e a Ordem de Cristo, lá se foi com o coronel.
Resultou numa caceteação em regra, um
suadouro terrível. Devia pesar a soprano seus bons cento e vinte qui los, em compensação o tenor era um fio de gente,
magérrimo. Vasco sentia vontade de rir quando a volumosa cacarejadora
perguntava:
Mi chiamano Mimí
Ma perché?
Non só.
Il mio nome è Lúcia.
O Coronel Pedro de Alencar deliciava-se,
sabia parte da ópera de memória. Abafado de calor, Vasco renegava a vaidade que
o fizera aceitar o convite só para envergar a farda e a condecoração.
Quando a soprano, vendendo saúde e
banhas, despenhou-se frágil e tísica nos braços evidentemente incapazes de
sustê-la do raquítico tenor, Vasco não pôde conter o riso, com grande
indignação do coronel, que o tragou de ignorante e burro.
Desde então guardara conveniente distância da
música chamada erudita, certamente digna da maior admiração, mas muito elevada
para ele, acima de sua capacidade.
Reconhecia agora ao piano uma daquelas
árias de lamentável memória. Só não recuou porque Clotilde estava a esperá-lo
para uma volta pelo tombadilho antes do jantar, com seu vestido de tafetá, os
bandos do cabelo, e um mundo de esperança na voz desfalecente.
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