segunda-feira, maio 26, 2014

Se gosto... Tenho uma colecção de discos
OS VELHOS

 MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 89








Tentou evitar a entrada na sala: sendo o comandante, talvez o protocolo o obrigasse a demorar algum tempo na admiração do pianista.

Olhou pela janela, dando as costas ao canto do salão onde se encontrava o piano, para evitar uma comprometedora troca de olhares com o executante.

Clotilde não se achava na sala, não a via. Para onde teria ido? O virtuoso parecia tomado de novo ímpeto, a música crescia, onde se metera a estonteante dama?

Arriscou uma olhadela para o lado do piano e ela sorriu-lhe sem levantar as mãos do teclado, a cabeça caída e os olhos em êxtase, os bandos saltando ao sabor das notas. Era professora de piano, contara-lhe na conversa matutina, mas a modéstia, mãe de todas as virtudes, como se sabe, fizera-a silenciar sua competência, seus dons artísticos, sua elevada condição de pianista capaz de executar música clássica.

Ele a imaginara simples professora de um pianinho vasqueiro, ensinando o curso primário do instrumento a moçoilas casadoiras, o bastante para assassinarem marchas, sambas, um foxe, no máximo uma valsa.

Não indo ela, tampouco, além da simpática execução de músicas dançantes nas festas sem orquestras das famílias conhecidas. E eis que, atirando a cabeça para um lado, desfazendo os cachos trabalhosos, revirando os olhos, atacava as óperas, era uma artista.

Sentiu-se orgulhoso, entrou na sala, a tempo apenas de acompanhar os demais ouvintes na salva de palmas a saudar os dons da pianista e talvez, o fato de descer a tampa do piano, dando por finda a audição.

-O comandante, dirigindo-se à aplaudida e modesta executante a cobrir o rosto com o xale, estendeu-lhe as mãos:

- Mas, que beleza! Que sonoridade, que execução perfeita! Que momentos divinos!

- Gosta de música clássica?

- Se gosto... Tenho uma colecção de discos, sem vaidade uma das maiores da Bahia e talvez do Brasil.

- E de ópera?

- Adoro. Antes de aposentar-me, quando chegava a um porto, minha primeira preocupação era saber se tinha teatro de ópera...

Durante todo esse diálogo segurava-lhe as mãos. Ela deu-se conta, de repente, retirou-as, num pequeno estremecimento nervoso, num riso sincopado. Ele ficou um pouco encabulado, sem saber onde pôr as mãos, foi ela quem retomou o fio da conversa:

- O piano desse seu navio, nunca vi tão desafinado.

- Tão ruim assim?

- Péssimo, nem dá gosto tocar.

- Vou tomar providências, mandar chamar um afinador em Recife. E, agora, vamos dar nossa voltinha?

Mas não teve tempo, soava a chamada do jantar. Dirigiram-se à sala, conversando sobre La Bohème. Ela era louca por Puccini. Ele afirmou-lhe não ser menor sua admiração e seu entusiasmo.

As voltas pelo tombadilho aconteceram após o jantar, antes da víspora no salão. Iam em passo medido, ela a jogar com o xale, ele a pitar o cachimbo, falando do Rio que ela adorara, da Bahia que segundo ele era boa cidade para morar, de Belém do Pará onde chovia todos os dias às mesmas horas.

 De quando em vez, um passageiro os interrompia, para cumprimentar o comandante, pedir-lhe uma informação. Falaram de Recife, cuja aquática geografia a encantara na viagem de vinda.

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