Se gosto... Tenho uma colecção de discos |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 89
Tentou evitar a entrada na sala: sendo o
comandante, talvez o protocolo o obrigasse a demorar algum tempo na admiração
do pianista.
Olhou pela janela, dando as costas ao
canto do salão onde se encontrava o piano, para evitar uma comprometedora troca
de olhares com o executante.
Clotilde não se achava na sala, não a
via. Para onde teria ido? O virtuoso parecia tomado de novo ímpeto, a música
crescia, onde se metera a estonteante dama?
Arriscou uma olhadela para o lado do
piano e ela sorriu-lhe sem levantar as mãos do teclado, a cabeça caída e os
olhos em êxtase, os bandos saltando ao sabor das notas. Era professora de
piano, contara-lhe na conversa matutina, mas a modéstia, mãe de todas as
virtudes, como se sabe, fizera-a silenciar sua competência, seus dons
artísticos, sua elevada condição de pianista capaz de executar música clássica.
Ele a imaginara simples professora de um
pianinho vasqueiro, ensinando o curso primário do instrumento a moçoilas
casadoiras, o bastante para assassinarem marchas, sambas, um foxe, no máximo
uma valsa.
Não indo ela, tampouco, além da
simpática execução de músicas dançantes nas festas sem orquestras das famílias
conhecidas. E eis que, atirando a cabeça para um lado, desfazendo os cachos
trabalhosos, revirando os olhos, atacava as óperas, era uma artista.
Sentiu-se orgulhoso, entrou na sala, a
tempo apenas de acompanhar os demais ouvintes na salva de palmas a saudar os
dons da pianista e talvez, o fato de descer a tampa do piano, dando por finda a
audição.
-O comandante, dirigindo-se à aplaudida
e modesta executante a cobrir o rosto com o xale, estendeu-lhe as mãos:
- Mas, que beleza! Que sonoridade, que
execução perfeita! Que momentos divinos!
- Gosta de música clássica?
- Se gosto... Tenho uma colecção de
discos, sem vaidade uma das maiores da Bahia e talvez do Brasil.
- E de ópera?
- Adoro. Antes de aposentar-me, quando
chegava a um porto, minha primeira preocupação era saber se tinha teatro de
ópera...
Durante todo esse diálogo segurava-lhe
as mãos. Ela deu-se conta, de repente, retirou-as, num pequeno estremecimento
nervoso, num riso sincopado. Ele ficou um pouco encabulado, sem saber onde pôr
as mãos, foi ela quem retomou o fio da conversa:
- O piano desse seu navio, nunca vi tão
desafinado.
- Tão ruim assim?
- Péssimo, nem dá gosto tocar.
- Vou tomar providências, mandar chamar
um afinador em Recife. E ,
agora, vamos dar nossa voltinha?
Mas não teve tempo, soava a chamada do
jantar. Dirigiram-se à sala, conversando sobre La Bohème. Ela era louca
por Puccini. Ele afirmou-lhe não ser menor sua admiração e seu entusiasmo.
As voltas pelo tombadilho aconteceram
após o jantar, antes da víspora no salão. Iam em passo medido, ela a jogar com
o xale, ele a pitar o cachimbo, falando do Rio que ela adorara, da Bahia que
segundo ele era boa cidade para morar, de Belém do Pará onde chovia todos os
dias às mesmas horas.
De quando em vez, um passageiro os
interrompia, para cumprimentar o comandante, pedir-lhe uma informação. Falaram
de Recife, cuja aquática geografia a encantara na viagem de vinda.
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