terça-feira, maio 27, 2014

Só que eu também não conheço Recife
OS VELHOS
MARINHEIROS

Episódio Nº 90












Infelizmente pouco pudera ver da capital pernambucana, chovia a cântaros e não tinha ela tampouco quem a conduzisse aos lugares dignos de visita. Amanhã seria diferente, disse a sorrir, teria o comandante às suas ordens para levá-la pelas pontes e praias, pelas avenidas e parques.

- Só que eu também não conheço Recife.

- Como não conhece? Comandante de navio, o senhor deve ter passado por aqui dezenas de vezes.

- Exatamente. Passado por aqui... Sem demorar nunca o tempo necessário para um conhecimento profundo, como desejaria ter para servir-lhe de cicerone. Quando digo que não conheço, quero dizer que conheço superficialmente. E já faz alguns anos que passei ali a última vez. Houve grandes mudanças depois.

- Pelo jeito, o senhor não quer me acompanhar. Talvez tenha uma namorada em Recife, não queira ser visto em minha companhia - e voltava a rir seu riso excitado e curto.

O comandante deteve-se, segurou-lhe o braço:

- Não diga isso, por favor. Esse tempo já passou há muito, desde que me aposentei. Cheguei a pensar que nunca mais olharia para outra mulher, mas agora...

- O quê?

Um passageiro parou junto deles, comunicou:

- A víspora vai começar. Só estamos esperando pelo senhor, Comandante.

A dama suspirou, os dedos de Vasco pressionaram-lhe levemente o braço, andaram para o salão. Ela ia de olhos postos na noite de estrelas e água verde, agitando o xale inconsequente, ele ouvia as palavras do indiscreto passageiro mas sem apreender-lhes o sentido, tomado pelo perfume que dela se evolava, sentindo na ponta dos dedos o tremor de seu corpo.

 Pouco antes de entrar no salão, teve-a nos braços, pois Clotilde, vogando no sonho, não se deu conta do cano a atravessar o tombadilho, a topada atirou-a contra o comandante, ele a susteve e durante uma fracção de minuto, uma eternidade de emoção, os seus seios comprimiram-se contra o peito de Vasco, seus cabelos em cachos contra sua face, e mesmo o calor de seu ventre órfão ele sentiu.

Sentaram-se juntos à mesa onde o senador, com dois cartões de víspora em sua frente, reprovava com o olhar a algazarra da mesa vizinha, na qual o Deputado Othon e as artistas exigiam, em altas vozes, o início do jogo.

 Senhoras gravibundas, numa demonstração de desagrado, voltavam as costas ao grupo ruidoso e teatral. Crianças reclamavam bombons e caramelos, todos os passageiros reunidos no salão.

Veio um cabineiro e vendeu dois cartões para o comandante, um para ele, outro para Clotilde:

- O senhor me ajuda, Comandante, a encontrar os números?

 O comissário, junto ao piano, com a sacola de fichas ao lado,
anunciou os prémios, cinco em total. O primeiro, para ser disputado em víspora horizontal, era um vidro de água-de-colónia.

 A um sinal do comissário, o camareiro exibia o perfume. Seguir-se-ia uma víspora vertical, o vencedor ganharia um chaveiro de prata, uma beleza. O comissário fazia considerações humorísticas sobre os prémios, arrancando risos e apartes da assistência, enquanto o camareiro mantinha o chaveiro suspenso, à vista de todos.

Seguia-se um cinzeiro com o escudo da Companhia Costeira e a fotografia daquele Ita gravados ao fundo. Era o terceiro prémio. O quarto, para cuja excelência chamava a atenção o comissário, seria outorgado numa víspora-mosca, devendo-se encher todo o cartão.

 Tratava-se de uma peça de biscuit, de regular tamanho, um sofá Luiz XV onde dois namorados de mãos dadas se olhavam. Aquela sublime expressão do gosto pequeno-burguês arrancou exclamações de êxtase de senhoras e senhores, de moças e rapazes, do senador e de Clotilde.

 Todos a cobiçavam, e o camareiro, ante tanto entusiasmo, foi levar a peça quase de mesa em mesa, pois todos desejavam vê-la, a começar pelas artistas. Clotilde suspirava:

- Ai, quem me dera ganhar...


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