Só que eu também não conheço Recife |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 90
Infelizmente pouco pudera ver da capital pernambucana,
chovia a cântaros e não tinha ela tampouco quem a conduzisse aos lugares dignos
de visita. Amanhã seria diferente, disse a sorrir, teria o comandante às suas
ordens para levá-la pelas pontes e praias, pelas avenidas e parques.
- Só que eu também não conheço Recife.
- Como não conhece? Comandante de navio,
o senhor deve ter passado por aqui
dezenas de vezes.
- Exatamente. Passado por aqui ... Sem demorar nunca o tempo necessário para um
conhecimento profundo, como desejaria ter para servir-lhe de cicerone. Quando
digo que não conheço, quero dizer que conheço superficialmente. E já faz alguns
anos que passei ali a última vez. Houve grandes mudanças depois.
- Pelo jeito, o senhor não quer me
acompanhar. Talvez tenha uma namorada em Recife, não queira ser visto em minha
companhia - e voltava a rir seu riso excitado e curto.
O comandante deteve-se, segurou-lhe o
braço:
- Não diga isso, por favor. Esse tempo
já passou há muito, desde que me aposentei. Cheguei a pensar que nunca mais
olharia para outra mulher, mas agora...
- O quê?
Um passageiro parou junto deles,
comunicou:
- A víspora vai começar. Só estamos
esperando pelo senhor, Comandante.
A dama suspirou, os dedos de Vasco
pressionaram-lhe levemente o braço, andaram para o salão. Ela ia de olhos
postos na noite de estrelas e água verde, agitando o xale inconsequente, ele
ouvia as palavras do indiscreto passageiro mas sem apreender-lhes o sentido,
tomado pelo perfume que dela se evolava, sentindo na ponta dos dedos o tremor
de seu corpo.
Pouco antes de entrar no salão, teve-a
nos braços, pois Clotilde, vogando no sonho, não se deu conta do cano a
atravessar o tombadilho, a topada atirou-a contra o comandante, ele a susteve e
durante uma fracção de minuto, uma eternidade de emoção, os seus seios
comprimiram-se contra o peito de Vasco, seus cabelos em cachos contra sua face,
e mesmo o calor de seu ventre órfão ele sentiu.
Sentaram-se juntos à mesa onde o senador, com dois cartões de víspora
em sua frente, reprovava com o olhar a algazarra da mesa vizinha, na qual o
Deputado Othon e as artistas exigiam, em altas vozes, o início do jogo.
Senhoras gravibundas, numa
demonstração de desagrado, voltavam as costas ao grupo ruidoso e teatral.
Crianças reclamavam bombons e caramelos, todos os passageiros reunidos no
salão.
Veio um cabineiro e vendeu dois cartões para o comandante, um para ele,
outro para Clotilde:
- O senhor me ajuda, Comandante, a encontrar os números?
O comissário, junto ao piano,
com a sacola de fichas ao lado,
anunciou os prémios, cinco em total. O primeiro, para ser disputado em víspora
horizontal, era um vidro de água-de-colónia.
A um sinal do comissário, o
camareiro exibia o perfume. Seguir-se-ia uma víspora vertical, o vencedor
ganharia um chaveiro de prata, uma beleza. O comissário fazia considerações
humorísticas sobre os prémios, arrancando risos e apartes da assistência,
enquanto o camareiro mantinha o chaveiro suspenso, à vista de todos.
Seguia-se um cinzeiro com o escudo da Companhia Costeira e a fotografia
daquele Ita gravados ao fundo. Era o terceiro prémio. O quarto, para cuja
excelência chamava a atenção o comissário, seria outorgado numa víspora-mosca,
devendo-se encher todo o cartão.
Tratava-se de uma peça de
biscuit, de regular tamanho, um sofá Luiz XV onde dois namorados de mãos dadas
se olhavam. Aquela sublime expressão do gosto pequeno-burguês arrancou
exclamações de êxtase de senhoras e senhores, de moças e rapazes, do senador e
de Clotilde.
Todos a cobiçavam, e o
camareiro, ante tanto entusiasmo, foi levar a peça quase de mesa em mesa, pois
todos desejavam vê-la, a começar pelas artistas. Clotilde suspirava:
- Ai, quem me dera ganhar...
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