Vasco tinha uma ideia mas não a revelou |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 91
O último prémio, para uma víspora em cruz, era uma surpresa, coisa mais
valiosa e bela do que a própria maravilha exibida antes. Ali estava, em cima do
piano; embrulhada em papel de seda.
Um volume quadrado e grande, possivelmente uma caixa, a despertar a
curiosidade e os comentários. O comissário reclamou atenção, ia dar início à
víspora do primeiro prémio. Fez um apelo às crianças, “àqueles anjinhos”,
pedia-lhes um pouco de silêncio. Começou a cantar os números.
A água-de-colónia foi ganha por
um fazendeiro de cavanhaque, metido num duque de caroá, que declarou entre
palmas:
- Vou levar para a patroa lá no Crato.. .
O chaveiro de prata saiu para uma garota de seus treze anos, após o
desempate, na base da bola mais alta, entre ela e mais dois jogadores que
haviam completado a víspora ao mesmo tempo.
O cinzeiro foi para a artista
morena que o ofereceu ao deputado ante os olhares de censura de algumas
famílias e do senador.
E chegou a hora emocionante da “mosca”,
o primeiro a encher o cartão levando o sofá de namorados, “aquele primor,
aquela perfeição, aquela obra de arte, aquele nec plus ultra”, como dizia o
comissário. Houve um silêncio quando começou o sorteio dos números.
Clotilde, cujos suspiros a cada prémio perdido abalavam o comandante,
atingia o auge do nervosismo, atrapalhava-se com o cartão, permitindo a Vasco
tocar-lhe a cada momento o braço, chamando-lhe a atenção para um número cantado
e esquecido de marcar. De repente, ela constatou:
- Só me falta uma casa...
Mas logo depois um sujeito, sentado próximo ao piano, declarou:
- Completo!
Era um tipo metido a elegante, muito conversador, dizendo-se
capitalista em férias, a realizar aquela viagem para conhecer as capitais e as
paisagens do Norte, velho sonho a concretizar-se agora.
No entanto, a paisagem marítima parecia não lhe interessar o mais
mínimo, pois passava o dia e a noite na mesa de póquer, a ganhar dos fazendeiros
e comerciantes.
O comandante, ainda naquela
tarde, demorara-se uns minutos peruando o jogo e o sentiu nervoso, como se a
presença de Vasco lhe diminuísse a sorte, lhe trouxesse azar. Realmente começou
a perder, e o comandante, profundo conhecedor do póker e das manias dos
jogadores, retirou-se discreto.
Clotilde só faltava chorar de tão triste:
- Por um número... E eu que tanto queria essa lembrança... Consolou-a Vasco: se a peça tivesse de ser
sua, ainda viria parar-lhe às mãos, não se entristecesse.
Mas como, se aquele senhor ganhou... Antipático... - Batia o salto do
sapato no chão, revirava os olhos.
Vasco tinha uma ideia mas não a revelou. O comissário começava a cantar
os números para o último prémio, a surpresa. Saiu para uma recém-casada, sempre
abraçada com o marido, a se beijarem em cada canto do navio, a se apertarem,
dizendo-se carinhos, “minha pltuqui nha”,
“meu bichinho de coco”, “meu bichano adorado”, servindo de alvo a sorrisos e
comentários maliciosos.
Juntaram-se em torno dela e do marido, para vê-la abrir o pacote de
onde retirou uma caixa e dessa caixa outro pacote e do pacote outra caixa, e
mais pacote e mais caixa, até chegar a um pequeno embrulho que, desfeito,
revelou conter uma chupeta.
Foi uma ovação, risos e palmas,
a premiada a sorrir sem jeito, o marido encabulado. Dr. Othon comentou alto:
- A sorte soube escolher...
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