quarta-feira, maio 28, 2014

Vasco tinha uma ideia mas não a revelou
OS VELHOS
MARINHEIROS


(Jorge Amado)


Episódio Nº 91









O último prémio, para uma víspora em cruz, era uma surpresa, coisa mais valiosa e bela do que a própria maravilha exibida antes. Ali estava, em cima do piano; embrulhada em papel de seda.

Um volume quadrado e grande, possivelmente uma caixa, a despertar a curiosidade e os comentários. O comissário reclamou atenção, ia dar início à víspora do primeiro prémio. Fez um apelo às crianças, “àqueles anjinhos”, pedia-lhes um pouco de silêncio. Começou a cantar os números.

 A água-de-colónia foi ganha por um fazendeiro de cavanhaque, metido num duque de caroá, que declarou entre palmas:

- Vou levar para a patroa lá no Crato.. .

O chaveiro de prata saiu para uma garota de seus treze anos, após o desempate, na base da bola mais alta, entre ela e mais dois jogadores que haviam completado a víspora ao mesmo tempo.

 O cinzeiro foi para a artista morena que o ofereceu ao deputado ante os olhares de censura de algumas famílias e do senador.

 E chegou a hora emocionante da “mosca”, o primeiro a encher o cartão levando o sofá de namorados, “aquele primor, aquela perfeição, aquela obra de arte, aquele nec plus ultra”, como dizia o comissário. Houve um silêncio quando começou o sorteio dos números.

Clotilde, cujos suspiros a cada prémio perdido abalavam o comandante, atingia o auge do nervosismo, atrapalhava-se com o cartão, permitindo a Vasco tocar-lhe a cada momento o braço, chamando-lhe a atenção para um número cantado e esquecido de marcar. De repente, ela constatou:

- Só me falta uma casa...

Mas logo depois um sujeito, sentado próximo ao piano, declarou:

- Completo!

Era um tipo metido a elegante, muito conversador, dizendo-se capitalista em férias, a realizar aquela viagem para conhecer as capitais e as paisagens do Norte, velho sonho a concretizar-se agora.

No entanto, a paisagem marítima parecia não lhe interessar o mais mínimo, pois passava o dia e a noite na mesa de póquer, a ganhar dos fazendeiros e comerciantes.

 O comandante, ainda naquela tarde, demorara-se uns minutos peruando o jogo e o sentiu nervoso, como se a presença de Vasco lhe diminuísse a sorte, lhe trouxesse azar. Realmente começou a perder, e o comandante, profundo conhecedor do póker e das manias dos jogadores, retirou-se discreto.

Clotilde só faltava chorar de tão triste:

- Por um número... E eu que tanto queria essa lembrança...  Consolou-a Vasco: se a peça tivesse de ser sua, ainda viria parar-lhe às mãos, não se entristecesse.

Mas como, se aquele senhor ganhou... Antipático... - Batia o salto do sapato no chão, revirava os olhos.

Vasco tinha uma ideia mas não a revelou. O comissário começava a cantar os números para o último prémio, a surpresa. Saiu para uma recém-casada, sempre abraçada com o marido, a se beijarem em cada canto do navio, a se apertarem, dizendo-se carinhos, “minha pltuquinha”, “meu bichinho de coco”, “meu bichano adorado”, servindo de alvo a sorrisos e comentários maliciosos.

Juntaram-se em torno dela e do marido, para vê-la abrir o pacote de onde retirou uma caixa e dessa caixa outro pacote e do pacote outra caixa, e mais pacote e mais caixa, até chegar a um pequeno embrulho que, desfeito, revelou conter uma chupeta.

 Foi uma ovação, risos e palmas, a premiada a sorrir sem jeito, o marido encabulado. Dr. Othon comentou alto:

- A sorte soube escolher...

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