quarta-feira, junho 04, 2014

Comandante: salve o pobrezinho, por amor de Deus!
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 97









Não o entregara à polícia, nada falara sobre o assunto, nem sequer com os fazendeiros logrados. Aquela censura referia-se à peça de biscuit. Onde conseguiria outra assim tão formosa para levá-la de presente à esposa?

Vários outros desembarcaram igualmente, o Ita ia deixando e recebendo passageiros em cada porto. Desceu inclusive a moça morena, cuja família a esperava no cais. Para ela a viagem fora curta, e ali mesmo, na chegada, apresentava o atlético bancário cearense
aos pais e tias.

 No fim da tarde viria dar-lhe adeus do ancoradouro, seus olhos acompanhariam saudosos a esteira do navio.

Quando o comandante, após assinar papéis trazidos pelo imediato, ficou livre e procurou Clotilde, já ela estava no cais com outros passageiros.

Saíram num grupo grande. Vasco não escondia sua decepção.

Esperava tê-la a sós consigo, naquela manhã e no começo da tarde, pois necessitava voltar para bordo relativamente cedo, outros papéis a assinar.

E via-se cercado pela algazarra de famílias inteiras, com cachos de crianças, todas a fazerem perguntas as mais tolas e absurdas, como se ele fosse uma espécie de enciclopédia universal, conhecendo não só as ruas, os restaurantes, os bares, como os preços da praça, inclusive os de fralda de recém-nascidos.

Não podia seguir o exemplo dos casadinhos de novo: esses agiam como se estivessem a sós no paraíso, como se os demais não existissem, só faltavam deitar num banco de jardim e ali mesmo, na vista de todos, chegar às últimas consequências.

Beijinhos, apalpadelas, carícias, mas tudo aquilo lhes era permitido pelo Estado e pela Igreja, haviam passado pelo juiz e pelo padre.

Vasco arrenegou aquela primeira parte do passeio pela cidade. Sobretudo quando Jasmim, o único defeito sério que ele enxergava em Clotilde, arrancou-se das mãos da dona para participar, evidentemente sem nenhuma possibilidade de êxito, da concorrência estabelecida, em frondosa praça do centro, em torno da conquista de uma cadela em cio, uma fox de regular tamanho e pouca pureza de raça.

A não ser que Jasmim contasse com sua nobreza oriental, sua exótica beleza a estontear a cobiçada fêmea, três vezes mais alta do que ele, como imaginar competir com um boxer de dentes arreganhados, um fox ao parecer com direitos de marido e disposto a defendê-los, e dois vira-latas?

Um deles enorme, tendo nas veias sangue de dinamarquês, a rosnar para o boxer, o outro com o ar mais malandro do mundo, um vira-lata dos mais totais, de olho cínico e focinho simpático.

Este último e o fox com ar de marido estavam na expectativa, esperançosos no resultado da batalha a travar-se entre os dois maciços campeões, o boxer e o enorme vira-lata.

O mais provável era um empate, com liquidação dos dois, os nomes riscados da lista de pretendentes. E tanto o fox quanto o vira-lata menor mediam-se, preparando-se já para a segunda luta, a decidir da posse da cadela.

Quanto a esta, parecia encantada com aquela disputa de seus favores. Animava a todos, mesmo o marido, uma devassa.

A situação mudou fundamentalmente quando Jasmim resolveu inscrever sua candidatura, fazendo-o num salto espectacular a situá-lo em meio aos contendores.

 Voltaram-se os quatro para o novo candidato, a rosnar. A cadela sorriu-lhe vaidosa, animando-o. Por um breve momento Vasco teve a ilusão optimista de um rápido e definitivo estraçalhamento do pequinês pelo boxer e pelo mestiço, com a eficiente ajuda do fox e do pequeno vira-lata.

Mas não aconteceu. Aqueles apaixonados pareciam donos do tempo, não se decidiam a começar, ficavam a rosnar, a mostrar os dentes, de quando em vez uns latidos. Aliás quem mais latia, agressivo, era Jasmim.

Quando o viu em meio à roda, entre os quatro rudes lutadores, Clotilde ameaçou um chilique. Escaparam-lhe dos lábios uns gritinhos histéricos, estendeu os braços, dizendo “Jasmim, Jasmim” aos arrancos, deixou-se cair num banco quase a desmaiar. Voltou-se para o comandante:

- Salve o pobrezinho, pelo amor de Deus! 

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